sexta-feira, 6 de março de 2015

David Gilmour: O Quinto Elemento dos Pink Floyd

David Gilmour celebra hoje o seu aniversário. Traço aqui o perfil do homem por detrás do guitarrista, figura discreta e pacata, num percurso que nem sempre se confunde com a banda que o celebrizou.
david gilmour pink floyd elemento (15)“Sinto-me bem a trabalhar a solo, tocar com os Floyd foi uma fase muito longa e satisfatória da minha vida, mas é altura de me distanciar.” No Live 8, assistimos ao impensável, com Roger Waters a reunir-se aos Floyd após tantos anos de lutas amargas, mas Gilmour recusou uma oferta posterior para reavivar o grupo (e uma quantia astronómica) numa proposta que não incluía necessariamente Waters.

David Gilmour nasceu em Cambridge, em 1946, e estudou na Waldorf School, tendo, no entanto, descrito a sua educação como “horrível”, algo que tem em comum com Roger Waters. Conheceu Syd Barrett quando estudava Línguas Modernas na Cambridge College of Arts and Technology. Durante os intervalos, os dois amigos ensaiavam canções dos Beatles e dos Rolling Stones. O primeiro grupo de Gilmour, fundado em 1963, chamava-se Joker’s Wild, mas a banda terminou em 1967. Seguiu-se uma temporada em França, onde Gilmour aprendeu o idioma e passou por diversas dificuldades, tendo inclusivamente roubado pão. Regressou a Londres e trabalhava como motorista e modelo, enquanto ponderava o seu futuro musical.
Em 1968, aos 21 anos, foi convidado para integrar os Pink Floyd e era uma escolha óbvia. Além de ser amigo de Barrett, ensinara-lhe muitos truques da guitarra; frequentava os locais onde os Pink Floyd atuavam e conhecia Waters, Richard Wright e Nick Mason. No Royal College of Art, em Novembro, Mason abordou-o, revelando-lhe que as coisas não corriam bem. “Disse-me para eu ir pensando, já que pretendiam fazer uma mudança.”
“Não era exatamente o projeto musical que me interessava na altura. A fama que eles tinham conquistado era obviamente atrativa, mas não levei o convite muito a sério até depois do Ano Novo, quando me telefonaram, propondo-me que me juntasse ao grupo.”
“Seguiu-se uma época insólita, em que tanto Syd como eu aparecíamos para os espetáculos. Demos cinco concertos com cinco elementos. Eu começava a aprender os temas e a cantar, enquanto Syd também tocava e ia cantando, ao meu lado. Foi muito estranho.”
A formação de cinco elementos que pouco durou.
A formação de cinco elementos que pouco durou.

NINGUÉM É INSUBSTITUÍVEL?

Sempre houve uma certa melancolia em Gilmour; aliás o próprio se afirmou como um guitarrista de blues, em essência.
Sempre houve uma certa melancolia em Gilmour; aliás, várias vezes se afirmou como um guitarrista de blues, em essência.

O grupo seguiu caminho sem Barrett. Gilmour assistiu à ruína do velho amigo, destruído por quantidades maciças de LSD aliadas a problemas mentais, mas reconhece que “não resultava. O Syd já não atuava em palco. Foi trágico. Tentei fazer o que pude e estou certo de que todos sentíamos uma espécie de culpa, o que se prolongou por muito tempo. Mas nenhum de nós sabia nada sobre esquizofrenia e distúrbios mentais. É fácil olhar para trás e pensar que podíamos ter feito alguma coisa”. Ao longo dos anos, Gilmour foi o único que manteve o contacto com Barrett e também a única pessoa que este concordava em receber, no estado de semi-reclusão em que vivia.
Piper at the Gates of Dawn é, ainda hoje, um testemunho do génio de Barrett. Syd continua a ser idolatrado por uma certa crítica elitista que pulveriza tudo o que os Floyd fizeram a partir de então, como The Dark Side of the Moon. Mas os críticos de sobrancelha erguida entraram realmente em cena quando Waters abandonou o grupo, e arrasam tudo a partir da fase em que Gilmour passou a liderar. The Division Bell foi demolido pela crítica nacional, que parece nunca ter tido em grande conta o talento do guitarrista, nem as suas capacidades musicais. A desmentir esta tendência, Gilmour surge sempre nos lugares cimeiros das votações de revistas como a Guitar Player ou a Guitar World. No entanto, as letras não são o seu forte, e a principal debilidade da fase pós-Roger Waters é a pobreza de alguns textos, tendo o próprio admitido essa lacuna.

A “NOVA YOKO ONO”

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Em 1970, durante uma tournée americana dos Pink Floyd, o único solteiro da banda conheceu Virginia Hasenbein, a quem todos chamavam “Ginger”, uma modelo de 21 anos, de Filadélfia. Gilmour encarregou Waters de distrair o namorado dela e apresentou-se. A atração foi imediata e ambos começaram uma relação poucos dias depois. O casamento com Ginger foi duradouro, mas terminou em divórcio nos anos 80.
O casamento com a sua segunda mulher, a escritora e jornalista Polly Samson influenciou-o pela positiva. Samson foi autora de algumas letras de The Division Bell, e também participou na digressão, no cargo de “fun police”, alcunha que lhe deram. Se, na anterior tournée, o lema tinha sido sexo, drogas e rock and roll, em 1994, os músicos andavam todos na linha, a começar pelo próprio David. “Era um clube de rapazes, antes de Polly. Ela foi encarada como a ‘fun police’, injustamente, e passou um mau bocado. Toda a gente achou que os Floyd tinham ganho a sua própria Yoko Ono.”
Quando iniciaram a sua relação, David concordou em parar com a cocaína. “Começara a gostar demasiado de coca”, admite. “Acho que foi por me ter divorciado, decidi embarcar em maus caminhos. E tudo coincidiu com o regresso dos Floyd.”
“Tomar a decisão de parar foi o mais difícil, mas, com isso assente, achei o resto fácil. Mas muitas pessoas investiam em quem eu era anteriormente: O indivíduo que tinha a coca. E não lhes interessava que eu me tornasse numa pessoa diferente e melhor.”
Durante a digressão de The Division Bell em 1994.
Durante a digressão de The Division Bell em 1994.

Nesta época, a presença dos filhos dos músicos no backstage, o namoro entre o baixista Guy Pratt e Gala, filha de Richard Wright, deu um enquadramento diferente à digressão. Pratt, que casaria com Gala em 1996, já não tocava todas as noites com uma ressaca, como na tournée anterior. E Gilmour, cumprindo um programa de exercício e com o sistema limpo, emagrecera e até parecia mais novo do que uns anos antes.

LASERS ATRAVÉS DE NEVOEIRO

david gilmour pink floyd elemento

Gilmour comenta que sempre teve facilidade na guitarra, “mas só quando paramos de imitar e o nosso som nos agrada, começamos a chegar a algum lado. Passei muito tempo a tentar ser Eric Clapton, Jimi Hendrix, Pete Seeger, Leadbelly, até surgir uma altura em que gostei de algo que eu próprio toquei. Os meus ‘defeitos’ podiam ser transformados em qualidades. Mas, no princípio, tive de fazer algumas imitações de Syd”.
Quase foi apedrejado pelos admiradores de Barrett quando o substituiu, mas, abstraindo-se das comparações e desenvolvendo o seu próprio estilo, limou a faceta musical dos Floyd. Roger era o cérebro e o filósofo, ao passo que Gilmour procurava expandir os limites sónicos do grupo.
Enquanto cantor, sempre foi mais eficaz do que Barrett e Waters, que tinha problemas com a afinação (aliás, nem o baixo conseguia afinar). Curiosamente, Gilmour tocou guitarra baixo em várias gravações dos Floyd. Sempre que Roger Waters ganhava um prémio de uma publicação por melhor baixista, telefonava sarcasticamente a Gilmour, agradecendo-lhe.
Em 2001, Gilmour recordou Syd: “Era uma pessoa adorável e foi muito triste quando não pôde continuar. Produzi dois álbuns a solo dele e foi um pesadelo. Não estava em grande forma, não parava de cair da cadeira.” O fantasma de Syd assombrou e inspirou The Dark Side of the Moon e especialmente Wish You Were Here. A melancolia do solo de Gilmour em «Shine on you Crazy Diamond» é típica dos blues. Para muitos, o guitarrista sempre foi um bluesman tocando num contexto de rock psicadélico. A forma como usa as escalas em «Money» é outro exemplo.
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Os traços característicos de Gilmour foram definidos num título de um artigo na revista Guitar World: “Raios laser rompendo o nevoeiro.” Um dos guitarristas mais inteligentes de sempre, não dispara 10 notas por segundo, construindo os seus solos no estilo “pergunta-resposta”, estabelecendo um diálogo, tal como fez em «Time». O “tempo” é também uma das qualidades que lhe apontam; Gilmour pode não ser veloz, mas é sintético e não falha um compasso. Além disto, Gilmour era também um “engenhocas” com as suas guitarras e equipamento, experimentando infatigavelmente pick-ups, braços, dispositivos. Chegou a abrir um buraco numa delas para obter o som em stereo. Não foi bem-sucedido. Tapou o buraco com uma mistura secreta de serrim e cola, cuja fórmula nunca revelou! É a guitarra que ainda hoje usa.

BEM-VINDOS À MÁQUINA

Os Pink Floyd sempre tiveram cuidado em manter a vida pessoal separada da profissional. Durante os anos 70, não davam muitas entrevistas, pouco socializavam uns com os outros e nada se sabia acerca deles. As capas dos discos tornaram-se famosas por equivalerem às paisagens mentais criadas pela banda. Ao longo dos anos 70, Rog (como os colegas lhe chamavam) foi assumindo a liderança até começar a dominar o grupo num regime de ditadura. Wish You Were Here foi a última colaboração digna desse nome, álbum que, além de ser o favorito de Gilmour, é inspirado por Syd Barrett. Em «Welcome to the Machine» ou «Have a Cigar», Waters critica a indústria trituradora da música, que, em sua opinião, ajudou a destruir Barrett. Os Floyd integravam “a máquina”, mas mantinham-se o mais possível afastados dela.
David Gilmor atento à imprensa, mas o mais possível afastado dela.
Atento à imprensa, mas o mais possível afastado dela.

Em Animals, a dinâmica hostil originou um disco memorável. Waters equipara a humanidade a animais – cães, carneiros e porcos. Em «Dogs», cita o Salmo de David, e o guitarrista, metaforicamente instigado pelo pormenor, executa um grande solo, optando pelo tom metálico da Fender Telecaster. Em «Pigs: Three Different Ones», Gilmour também sobressai, mas a relação entre os dois músicos ia de mal a pior. Um eterno diplomata, David envolvia-se em inúmeras discussões com Roger, e o ponto de rutura ocorreu no último concerto da digressão do álbum, em 1977. Waters viu um fã deslumbrado, na primeira fila, aproximou-se e cuspiu-lhe na cara. Gilmour ficou tão repugnado que saiu do palco.
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Na época de The Wall, David e Roger envolveram-se numa discussão violenta num restaurante de Los Angeles, a única vez, segundo o guitarrista, em que estiveram perto de passar à violência física. O teor das músicas dos Pink Floyd não andava longe da violência psicológica, como sucedeu em The Wall.
“Orgulho-me do meu trabalho nesse álbum, mas, às vezes, parece-me um relatório do Roger, acerca de quem lhe tramou a vida; a mãe, a escola, a ex-mulher, isto, aquilo…”, desabafou Gilmour.
O punho de ferro de Waters dominava o grupo, com o baixista e fundador a eliminar metodicamente a concorrência e a criar divisões, tanto a nível contratual como pessoal. Praticamente expulsou o teclista Richard Wright, que, na época, se encontrava dependente da cocaína e foi um alvo fácil.
O baterista Nick Mason foi-se mantendo por amizade a Roger, porém admite: “O Rog é uma das pessoas mais ‘difíceis’ do mundo.” David não pactuou. “Rog passou de um músico e de um colega a um megalómano paranoico, completamente descontrolado”, insurgiu-se certa vez. “Álbuns como Wish You Were Here tiveram um enorme sucesso, não apenas devido à contribuição de Roger, mas também porque havia um equilíbrio maior entre a música e as palavras do que em álbuns mais recentes. Foi isso que tentei fazer em A Momentary Lapse of Reason.” The Final Cut, em 1983, foi efetivamente um corte. Gilmour chamou-lhe ironicamente “o melhor álbum a solo de Roger Waters”. Da mesma forma, Momentary Lapse, o álbum de regresso dos Pink Floyd, em 1986, soa a um disco a solo de Gilmour acompanhado por músicos de estúdio, já que a contribuição de Mason e Wright não foi substancial.

O SEXO DOS PORCOS

Novo risco: Gilmour assume a liderança dos Pink Floyd.
Novo risco: Gilmour assume a liderança dos Pink Floyd.

Waters deixou os Pink Floyd em 1985, presumindo que, sem ele, a banda não teria futuro. Mas Gilmour assumiu a liderança, e a ressurreição originou uma guerra com Waters que se estendeu aos tabloides, aos tribunais e aos palcos. Durante a digressão americana de A Momentary Lapse of Reason, Gilmour lutava com Waters e a sua tournée Radio K.A.O.S. A batalha, a nível de promotores e de autorizações chegou a ponto de Waters impedir o uso do porco voador e insuflável, utilizado nos espetáculos dos Floyd nos anos 70. Os advogados da fação Gilmour observaram que não se tratava de um porco, mas sim, de uma porca. Por conseguinte, dotaram a referida “porca” de testículos bastante visíveis, contornando habilmente os direitos de autor reclamados por Waters. Mas a guerrilha prosseguiu, com adeptos a exibirem cabeças de porco autênticas espetadas em paus, com sangue a escorrer, durante os concertos, como se se tratasse de uma manifestação tribal.

PADRINHO DE KATE BUSH

Durante a promoção do seu primeiro álbum a solo em 1978.
Durante a promoção do seu primeiro álbum a solo em 1978.

Gilmour lançou o seu primeiro álbum homónimo na Primavera de 1978. O segundo registo a solo, About Face, foi editado em 1984. Nestes dois discos, o guitarrista e compositor demonstra o grande contributo que deu à sonoridade dos Floyd. O seu estilo imediatamente identificável é também a espinha dorsal de On an Island, editado em 2006 e que dividiu opiniões. Enveredando por uma abordagem mais contemplativa e serena, o álbum não possui o dinamismo dos trabalhos anteriores. Do ponto de vista técnico, é um disco conseguido, mas pouco acrescenta ao legado do guitarrista.
Em 2002, realizou uma série de concertos acústicos a solo em Londres e Paris, (acompanhado por uma pequena banda e coro) documentados no DVD David Gilmour in Concert. Durante as pausas de atividade dos Floyd, Gilmour tocou inúmeras vezes como músico de estúdio, foi produtor e engenheiro de som, colaborou com os Dream Academy, Grace Jones, Bryan Ferry, Robert Wyatt, Paul McCartney, Ringo Starr, Sam Brown, Jools Holland, Pete Townshend, The Who, ou os Supertramp. Foi também Gilmour que descobriu Kate Bush, apadrinhando o início da sua carreira, tendo produzido o álbum de estreia da cantora, The Kick Inside. Kate ficar-lhe-ia eternamente grata.
Em 1996, David é integrado no Rock and Roll Hall of Fame com os Pink Floyd e, em Novembro de 2003, é-lhe atribuída a Ordem do Império Britânico.

VIDA PARA ALÉM DOS FLOYD

Com Polly Samson.
Com Polly Samson.

David Gilmour sempre foi conhecido pelo seu feitio pacato, o que parece ter herdado do pai, Douglas, especialista em genética, e Sylvia, editora cinematográfica, casal bastante descontraído. O primeiro disco que comprou foi «Rock Around The Clock» e, num esforço autodidata, aprendeu a tocar guitarra sozinho, aos 14 anos, com a ajuda de um disco de instrução à iniciação de guitarra, por Pete Seeger.
Gilmour é dono de uma famosa e vasta coleção de guitarras. A primeira foi uma velha Tatay, de cordas de nylon, pedida emprestada a um vizinho. “Mais tarde, ofereci-a à minha irmã”, declara. Outra que destaca é uma Ovation com uma afinação específica, na qual escreveu os acordes de «Comfortably Numb». “A música é minha e a letra é do Roger. Foi uma das últimas grandes colaborações que conseguimos levar a bom porto.” O guitarrista é, porém, um aficionado da Fender Stratocaster, “porque Hank Marvin tinha uma”, aspeto que partilha com Mark Knopfler. Colecionador de Fender’s, Gilmour é o orgulhoso proprietário da Stratocaster com o número de série 0001, mas, recusando-se a reunir velharias atrás de vitrinas, admite que ainda a toca de vez em quando.
Conhecido pela sua extraordinária coleção de guitarras.
Conhecido pela sua extraordinária coleção de guitarras.

As suas principais influências musicais incluem BB King, Jimi Hendrix e Peter Green, mas o seu músico favorito é Bob Dylan. Mark Knopfler impressiona-o: “Tem uma técnica muito melhor do que a minha e faz coisas inacreditáveis.” Gilmour é também proprietário de uma casa/barco transformada em estúdio de gravação, o Astoria, no qual gravou muito do seu trabalho. Não tem o estilo de vida típico de um multimilionário, tendo já ajudado a angariar milhões de libras para a caridade. Colabora com diversas causas, incluindo a ChildLine, a GreenPeace e a Amnistia Internacional. É também um piloto experiente e um dos seus hobbies, depois de tirar o brevet, em 1987, é pilotar jatos supersónicos. Gilmour tem ainda um curso de acrobacias aéreas e era dono da Intrepid Aviation Company, empresa que fazia exibições aéreas na Grã-Bretanha, tendo-a vendido quando se tornou num empreendimento “demasiado comercial”. Outras das suas paixões são o futebol, o cricket, o teatro e a literatura. Juntamente com o filho, Charlie, aprendeu a tocar saxofone.
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RECORDAÇÕES DE SYD E RICHARD

Em 2007, é editado o excelente DVD duplo Remember That Night, que retrata um concerto no Royal Albert Hall, onde Gilmour interpreta temas antigos e novos. Este trabalho tornou-se rapidamente número um de vendas em vários países europeus. Outra das novidades é a interpretação de um tema de Syd Barrett, «Dark Globe». “Foi o primeiro concerto que dei, depois de o Syd ter morrido, e achei que seria um tributo adequado”, diz David. “O grupo é composto por músicos brilhantes. E a pressão não é a mesma; podemos fazer as coisas de modo diferente, tocar coisas que não se esperam de nós. Faço-o por mim, mais do que pelos outros. Mas espero que outras pessoas se juntem a nós e também gostem.”

A 26 de Agosto de 2006, Gilmour tocou nos estaleiros de Gdańsk, na Polónia, no último concerto da digressão, perante 50 mil espectadores. A atuação celebrou o movimento Solidariedade dos trabalhadores do estaleiro naval, liderado em 1980 por Lech Walesa, que reuniu 17 mil grevistas contra as difíceis condições de trabalho e custo de vida, levando à queda do regime comunista. Gilmour foi recebido por Walesa e ambos depositaram uma coroa de flores no monumento aos trabalhadores do estaleiro, mortos na época.
Live in Gdańsk seria o último registo ao vivo de Richard Wright, que faleceu em Setembro de 2008, uma semana antes da edição do álbum/DVD.

Por esta altura, foi lançada uma réplica da guitarra favorita de David Gilmour, a recuperada ‘Black Strat’. Pouco depois, David juntou-se a Roger Waters e à banda deste para uma performance de The Wall, em Londres, recriando o seu famoso solo de «Comfortably Numb», o ponto alto dos espetáculos de 1980, em que o guitarrista surgia subitamente no topo da parede, com a sua sombra projetada sobre centenas de pessoas. Um pouco como a sua influência.

segunda-feira, 2 de março de 2015

Lou Reed faria 73 anos: A Metáfora da Cidade Dividida

Lou Reed faria hoje 73 anos. É uma lenda por vários motivos, um dos músicos mais influentes de sempre. Uma forma de o homenagear será contar a história de um dos seus álbuns mais marcantes, Berlin, de 1973. Hoje é considerada uma das obras mais dramáticas da história do rock, um ciclo de canções sobre sexo, drogas, solidão e violência psicológica. Mas, na época, Berlin foi recebido com espanto e desaprovação.
lou reed berlin regressa (2)
Quero ser o maior escritor desta terra de Deus… quero fazer rock ‘n’ roll que esteja à altura d’ Os Irmãos Karamazov.
“Tinha de tirar Berlin do meu sistema ou explodia. Foi muito doloroso. Não quero passar por aquilo outra vez”, disse Reed na altura. Tendo em conta o teor do álbum, não espanta. Ouvi-lo é o mesmo que olhar para um abismo sem pestanejar. Foi talvez a experiência mais arriscada de toda a sua carreira.
Em 1973, Lou Reed já era uma lenda e, quando anunciou que ia fazer um disco com o produtor Bob Ezrin (Alice Cooper, Pink Floyd), esperou-se um registo comercial. No entanto, até o reputado crítico Lester Bangs (grande fã de Reed) o descreveu como “o álbum mais deprimente de sempre”.
O poster original da RCA, que não soube como promover o álbum.
O poster original da RCA, que não soube como promover o álbum.
Berlin foi gravado em Londres e Nova Iorque, no Verão de 1973, com a participação de diversos virtuosos: Steve Hunter, Dick Wagner, Steve Winwood e Bob Ezrin, bem como os respeitados Randy e Michael Brecker, nos saxofones. Os baixistas foram dois dos melhores de sempre: Tony Levin e Jack Bruce, dos Cream, que apenas ia colaborar numa faixa, mas gostou tanto que ficou até ao final das sessões.
“Todos disseram, ‘não o faças, Lou, estás a pedi-las…’ Por isso, fizemo-lo. E os resultados foram muito estranhos”.

“BERLIN ÉS TU”

 Reed nunca visitara Berlim, mas gostou do simbolismo da cidade, achando que reflectia a temática das canções, a história de duas pessoas numa relação destrutiva.
“Berlim é uma cidade dividida [em 1973], e sucedem por lá coisas potencialmente violentas. Não é a América, embora alguns personagens pareçam americanos. Pareceu-me simplesmente melhor do que chamar-lhe ‘Omaha’.”
O compositor explica que o trabalho “foca a violência, tanto mental como física. O mais importante é a relação entre as duas personagens centrais. O narrador expressa o seu ponto de vista, que não é particularmente agradável”. Já muito se especulou acerca do disco. Nico, a antiga vocalista dos Velvet Underground, revelou que Reed lhe escreveu cartas, dizendo, “Berlin és tu”.
lou reed berlin regressa (1)
No início dos anos 70, a popularidade nas tabelas de vendas pertencia a James Taylor ou aos Yes. De repente, surgiu um trabalho de alguém que queria fazer discos do seu próprio tempo, e não da época em que se inseria. Depois do único grande sucesso mainstream da carreira de Reed, «Walk on the Wild Side», (do álbum Transformer), esperar-se-ia algo nessa linha.
Bob Ezrin afirma que “Lou poderia ter enveredado por outros ‘Transformers’, mas preferiu fazer uma obra que mergulha na intimidade do autor, de forma memorável”. Ezrin, que fez uma produção excecional, também mergulhou nas trevas do álbum e, no final das gravações, sofreu um esgotamento nervoso; dirigiu-se a um hospital e pediu que o internassem. Antes disso, porém, conferenciou com Reed, e concluíram que talvez fosse melhor fazerem um favor ao mundo e esconderem aquela ‘coisa’ que tinham gravado. A companhia discográfica, por seu lado, ficou “horrorizada”. Como alguém disse, “não é propriamente o Cats”…
lou reed berlin returns to stage
Na época, a Rolling Stone sublinhou que “Berlin é amargo e não faz qualquer concessão. É um dos melhores discos conceptuais de sempre. Não tem nada de ‘bonito’, não possui moralismos de nenhuma ordem. Reed é um dos poucos artistas sérios a fazer música, hoje em dia, e seria de esperar que as pessoas parassem de lhe dar sermões”.

 

BELEZA NAS TREVAS

lou reed berlin regressa (4)Berlin não ficou datado. É um álbum orquestral e melodioso, dotado de um minimalismo sombrio; uma demonstração do talento de Reed. Começa com o piano de Allan Macmillan, numa atmosfera à Kurt Weill, e muda de ritmo com «Lady Day», uma evocação de Billie Holiday. No terceiro tema, «Men of Good Fortune», Reed cita Dostoiévski. “Os homens afortunados muitas vezes provocam a queda de impérios; enquanto homens de começos humildes muitas vezes não podem fazer nada. E eu? Simplesmente não quero saber.” O cinismo aumenta em «How do You Think it Feels?», com Reed a perguntar, “como achas que nos sentimos depois de estarmos a pé cinco dias, por termos medo de dormir?”
O álbum não dá grandes hipóteses de descontração. Em «Oh, Jim», Reed canta, num tom sarcástico, “os teus amigos da onça dão-te comprimidos, dizem que é bom para te curar as maleitas”. «Caroline Says II» é um tema suave e acústico, quase romântico, o que contrasta com a letra… “Caroline diz, levantando-se do chão, podes bater-me à vontade, mas já não te amo.” Na canção seguinte, «The Kids», Reed canta: “Vão-lhe tirar os miúdos porque disseram que não era boa mãe. A cabra miserável não conseguia dizer não a ninguém.” Neste tema, um coro infantil grita pela mãe. Terão dito às crianças que nunca mais iriam ver as suas próprias mães, o que explica os gritos arrepiantes (embora Bob Ezrin desminta este rumor). Em «The Bed», a protagonista corta os pulsos “numa noite estranha e agoirenta”. O narrador, empedernido, não se comove.
A elegância de «Sad Song» explicita o conceito do álbum e os objetivos de Reed ao longo da sua carreira: Tentar ver a beleza no meio das trevas.

A SEGUNDA DIGRESSÃO

34 anos depois, em 2007, Reed concretizou a ambição de realizar uma digressão mundial baseada no disco. O espetáculo foi recebido com entusiasmo em Nova Iorque, onde estreou, na Austrália e nalgumas das salas mais conceituadas da Europa. No ano seguinte, foi lançado um DVD que regista este momento histórico.
O produtor do disco, Bob Ezrin, e o cenógrafo Julian Schnabel juntaram-se a Lou Reed e a uma banda de 30 elementos, incluindo uma secção de cordas e outra de metais, além de um coro infantil. Sharon Jones e Antony Hegarty também participaram.
Numa entrevista dada nesta fase, o autor confessou: “Berlin é sobre ciúmes, raiva, humilhação. Todos passamos por problemas sérios com mulheres. A vida é assim. Mas espero nunca mais experimentar esse tipo de relação, essa cólera terrível.”

AS ALFINETADAS DE REED  

Conhecido pela sua frontalidade, por vezes, incómoda, Lou Reed acha que o rock “se tiver mais de três acordes, é jazz”. Mas não fica por aqui:
“Se amanhã Deus aparecesse e me perguntasse: ‘Queres ser presidente?’, eu responderia ‘não’. ‘Queres ser político?’ ‘Não.’ ‘Queres ser advogado?’ ‘Não.’ ‘O que queres fazer?’ ‘Quero tocar guitarra rítmica.’”
Nas notas de Metal Machine Music, um álbum de feedback, escreveu: “A paixão — o REALISMO — o realismo foi a chave. (…) A maioria não gostará disto e eu não vos censuro, de todo. (…) A minha semana é melhor que o vosso ano.”
As gravações de Berlin decorreram num ambiente pesado. Ezrin, que tinha 23 anos na altura, relembra: “Claro que as drogas rodearam o projeto, e muitos de nós abusaram.” Hoje, quando perguntam a Lou Reed o que recorda das sessões, este responde: “Nada.”
A meio da gravação, a mulher de Reed, Betty, tentou suicidar-se. “Arrasámo-nos psicologicamente nesse álbum”, diz Reed. O cantor fez a digressão original de Berlin completamente alcoolizado, drogado e intratável, tendo de sair do palco com taquicardia e espasmos, em pelo menos um concerto. Gritava aos roadies e destruía o equipamento.
"Não paguei bilhete, por isso... que se foda."
“Não paguei bilhete, por isso… que se foda.”
A digressão foi retratada em Rock and Roll Animal, editado meses depois de Berlin. Reed entrava em palco e alguém pedia um antigo êxito. A resposta era “shut the fuck up!”. Fez algo parecido no concerto de inauguração da Casa da Música, no Porto. Ao ver os convidados maçados na primeira fila, cruzou os braços e disse-lhes, com ar enfadado: “Não paguei o bilhete, não foi? Pois… Por isso, que se f…” Reed não aprecia públicos passivos e sem espírito crítico.
Nos anos 70, era, a par de Keith Richards, um dos músicos no topo da lista dos que poderiam morrer de overdose. A sua morte chegou a ser noticiada por uma agência. Felizmente, Reed abandonou o álcool e a droga há mais de 30 anos. Quando lhe perguntaram por que se dedicou ao Tai Chi Chuan, respondeu que era “melhor do que esvaziar uma garrafa de whisky em 20 minutos”. “Como vive em Nova Iorque?” “Cuidadosamente… como um porco-espinho a fazer amor.”
Se é verdade que um artista não pode dar ao público o que ele quer, correndo o risco de morrer enquanto artista e de extinguir a consciência do público, Reed provou-o. Foi pena que nenhuma das digressões tivesse passado por Portugal… para o cantor dar mais umas alfinetadas. Tal como disse a crítica Lisa Robinson, referindo-se a Lou: “Quando o rock se torna pretensioso e acomodado, aparece sempre alguém que lhe dá um pontapé no…”