sábado, 5 de dezembro de 2020

BOB DYLAN, o sociólogo da música

 

Bob Dylan. O nome fala por si. Trata-se de um dos maiores nomes da história da música e um dos mais influentes desta modalidade artística. Com uma atitude muito sui generis e pioneiro tanto ao nível instrumental como lírico, o norte-americano conquistou de forma galopante os seus contemporâneos e coleciona mais de cinco décadas de êxitos e de virtude escrita. Para além do artista, a sua componente humana saltou à vista enquanto promovia uma música intervencionista, esta que refletia a postura do seu autor e que se opunha aos conflitos que deflagraram nos anos 60 e 70. Mais do que sua música, exalta-se a proeminência de uma referência na sociedade global.

Robert Allen Zimmerman nasceu a 24 de maio de 1941 no estado do Minnesota, nos Estados Unidos da América. Por fruto da ascendência báltica dos seus avós, o pequeno Robert teve uma educação judaica dada pelos seus pais no seio de uma pequena comunidade. Foi desde cedo (sete anos) que a sua paixão pela música nasceu, ouvindo com regularidade estações de rádio que passavam blues e country. Na sua adolescência, fez parte de várias bandas que produziram covers de nomes prestigiados como Little Richard e Elvis Presley. Da cidade que o viu nascer, Duluth, migrou para Minneapolis para ingressar na universidade. Foi neste período que focou a sua música no folk, fundamentando essa escolha pelo maior sentimento que recaía no mesmo. Enquanto atuava em vários eventos de folk, Robert definiu arbitrariamente, como seu nome artístico, “Bob Dylan”. O apelido deriva de uma inspiração do músico, sendo esta o poeta Dylan Thomas, este que viria a influir a criação das suas letras.

Em 1960, Bob desiste da universidade e decide viajar para Nova Iorque, onde contacta com o seu ídolo Woody Guthrie, alguém que o consciencializou para a importância de expressar o que é humano na música e para a ressalva do espírito americano. Nesta sua itinerância, contacta com vários indivíduos de renome no panorama do folk e inicia a sua nacionalização, atuando em diversos pontos do país. Um destes concertos acabou por ser analisado por um crítico no emblemático periódico “The New York Times” e os convites por parte de produtoras começaram a surgir. A introdução da harmónica no seu perfil artístico foi também marcante nesta revelação de prospeção. Assinando pela Columbia Records, o norte-americano veria o seu primeiro álbum a ser lançado em março de 1962, simplesmente denominado por “Bob Dylan”. O estilo do mesmo não fugiu ao diapasão dos seus concertos e consistiu essencialmente num álbum de folk e blues com algum gospel à mistura. Em paralelo, não hesitou em cooperar com outros artistas, nomeadamente tocando harmónica e nos vocais de suporte. Duas decisões importantes no seu futuro seriam tomadas nesse mesmo ano, sendo elas a alteração do nome para Robert Dylan e a assinatura de um contrato com o agente Albert Grossman. No final de 1962, viajou para Inglaterra e atuou em diversos bares de folk da capital britânica, iniciando nesta etapa a sua carreira internacional. No ano seguinte, lançou o seu segundo álbum, um bem mais personalizado no que toca à criação e edição das mesmas. Todas as composições foram originadas por Dylan e o protesto social começou a dar tons e melodias. Neste álbum (“Freewheelin’”), a música “Blowin’ in the Wind” ganhou contornos mediáticos pela problematização do status quo sócio-político. Diversas circunstâncias, tais como a crise dos mísseis de Cuba, o movimento crescente a favor da igualdade de direitos civis e o desarmamento nuclear, motivaram uma expressão pungente e iminente por parte do músico. Também a peculiar voz nasalada que ostentava motivou uma atenção redobrada por parte dos seus homólogos músicos, que viam na sua genialidade o complemento ideal nesta vaga que originaria a contracultura.

O terceiro álbum, lançado em 1963 e designado “The Times They Are a-Changin’’” dissipou quaisquer dúvidas sobre o pendor ativista da produção do autor, produzindo analogias entre vários episódios sociais e as suas composições. No entanto, em 1964, produziu uma série de canções relativas ao amor e às suas contingências, para além de algum descontentamento perante o seu trabalho transato. Neste sentido, entre 1964 e 1965, Bob inicia uma transição para um folk-pop-rock e retoca a sua aparência, não descartando o uso de instrumentos eletrónicos nos seus trabalhos consecutivos. Esta mudança de atitude gerou alguma controvérsia e até animosidade por parte dos que associavam o norte-americano ao ressurgimento do folk americano clássico. Contudo, composições como “Mr. Tambourine Man”, “It’s All Over Now, Baby Blue” e “It’s Alright Ma (I’m Only Bleeding)” são consideradas como três das mais relevantes músicas do repertório do artista e foram todas elas criadas neste período. Em 1965, outro dos principais singles da carreira de Dylan foi produzido, sendo este “Like a Rolling Stone”, nomeada uma das 500 melhores de sempre para a conotada revista Rolling Stone, consolidado pelo álbum “Highway 61 Revisited”. Secundado pela The Band, realizou o álbum “Blonde on Blonde” (1966), onde fundiu a vertente hipster de Dylan e o tradicionalismo proveniente de Nashville e da supracitada banda. Nesse mesmo ano, viaja para a Austrália e expande-se na Europa, fazendo a reconciliação com a sua massa de fãs e retomando, nas primeiras partes dos seus concertos, o uso da harmónica e da guitarra acústica. Contudo, a sua vida e obra são apanhados numa emboscada e quase acabados de forma abrupta.
Self Portrait (1970), de Bob Dylan, capa do
álbum homónimo que despoletou críticas negativas.

Para combater o cansaço acumulado, o artista tomou substâncias ilícitas que lhe viriam a ser danosas. Para além disso, a 29 de junho do ativo ano de 1966, Bob Dylan tem um aparatoso acidente com a sua moto, partindo várias vértebras no seu pescoço. Na sucessão deste episódio viriam oito anos sabáticos sem quaisquer concertos dados. Todavia, nesse prolongado hiato, permaneceu na produção lírica, criando a mítica “All Along the Watchtower”, celebrizada pelo guitarrista psicadélico Jimi Hendrix; e a lançar música mais consonante com as suas origens. Célebres também se tornaram as frequentes colaborações com Johnny Cash e a sua omissão do festival Woodstock, de 1969. Os anos 70, por sua vez, assistem à ressurgência de Bob Dylan aos palcos e aos êxitos, começando por “Knockin’ on Heaven’s Door”(1973), que se tornaria numa das músicas a ter mais covers de sempre. Para além disso, desenvolveu também a sua componente de desenhista e de pintor, aventurando-se em autorretratos, aguarelas, guaches, lançando seis livros desde 1994 e até expondo nos quatro cantos do mundo. Um ano profícuo em parcerias e em concertos por todo o mundo, destacando-se 1978 pelos 114 existentes entre Ásia, Europa e EUA. O seu legado, mais do que afirmado e assegurado, seria consolidado em mais álbuns, apesar dos altos e baixos que a exigente e divergente tendência musical implica. Os mesmos apresentam-se a seguir:
  • Blood on The Tracks (1975)
  • Desire (1976)
  • Time out of Mind (1997)
  • Love and Theft (2001)
Entre onze Grammy Awards, um Academy Award e pelo reconhecimento no Rock n’ Roll Hall of Fame, há muito mas muito mais que se pode contar sobre Bob Dylan e a orla de influência que construiu desde os anos 70. A sua escrita cruzou a poesia com a música, sendo um dos pioneiros, ao lado de Jim Morrison, na sua fusão e no tratamento de ambas como uma só. Esta proeza lírica valeu-lhe o Prémio Nobel da Literatura em 2016, precisamente devido a um legado na composição musical que se equipara, também, ao de Leonard Cohen. Instrumental e melodicamente, revelou-se o salvador do folk que se ia camuflando graças à emergência do profundo jazz e ao grito de revolta do rock.

A força da palavra que transmitia com a sua vigorosa melodia, para além da temática incisiva e profunda, permitiu que o reerguimento do folk decorresse de forma subtil mas natural. Não obstante o seu caraterístico estilo, não se esqueceu de provar de tudo que havia para provar. Country, gospel, blues, R&B e rock n’ roll. Por esta versatilidade, nomes como Neil Young, Nick Cave, David Bowie, Syd Barrett, Tom Waits, Patti Smith, Joni Mitchell e os quatro Beatles de Liverpool louvaram o seu papel na formalização espontânea da música. Esta como instrumento de sátira, de crítica e de reflexão mas também de sentimento e de comprazimento. Tudo passou pela mente e pelo coração de um referencial musical, o mesmo que às palavras deu verdade e à música uma renovada felicidade.

domingo, 6 de setembro de 2020

“S&M2”: MAIS DO QUE UM CONCERTO, HISTÓRIA...

 

Nas noites de seis e oito de setembro de 2019, o recente inaugurado Chase Center, em São Francisco na Califórnia, recebeu o 20.º aniversário do concerto “S&M” dos Metallica. A banda composta por Lars Ulrich, James Hetfield, Kirk Hammett e Robert Trujillo, decidiu compensar os fãs da melhor forma, tocando dois novos concertos com a Orquestra Sinfónica de São Francisco. O resultado não podia ser mais empolgante, revelando assim uma banda mais madura e novidades comparativamente à setlist de há 20 anos atrás. A banda norte-americana veio reafirmar que na música tudo é possível, e é possível de se o fazer bem.

Na sua estreia mundial, “S&M2” começa com uma contextualização de todos os preparativos do evento, onde é feita uma retrospectiva do que foi o projecto “S&M” em 1999, na altura dirigido pelo compositor Michael Kamen. Os artistas revelam que para este novo concerto todos os arranjos e preparativos foram pensados sempre em sintonia com a banda, podendo assim criar uma obra sincera e, em especial, para a Metallica Family. De realçar também o papel social da banda, que apresenta algumas iniciativas da sua instituição “All Within My Hands (https://www.allwithinmyhands.org/welcome.html), que tem como objectivo principal ajudar pessoas na sua formação académica e profissional, tendo já comparticipado centenas de comunidades e escolas.

Mas vamos à musica! Com Michael Tilson Thomas a liderar a ‘segunda banda’, a abertura do concerto faz-se com a clássica The Ecstacy Of Gold, de Ennio Morricone, que os Metallica utilizam como abertura dos seus concertos (em cassete) desde 1984. Esta foi protagonizada pela famosa cena do filme “O Bom, o Mau e o Vilão” (Sergio Leone, 1966) e teve uma performance épica, num crescendo que faz arrepiar os mais insensíveis. Seguiu-se The Call Of Ktulu, do álbum Ride The Lightning (1984), famosa já pela sua interpretação com orquestra em 1999, não desapontando quem já tinha saudades desta versão, e afirmando que o resto do espetáculo só poderia correr bem.

E assim foi, sem espaço para respirar, For Whom The Bell Tolls, do mesmo álbum de 1984, chega para pôr o público a cantar, pois a sua energia vai mais além do silêncio exigido em frente ao grande ecrã. The Day That Never Comes, do álbum Death Magnetic (2008), é a primeira nova experiência em comparação a “S&M” e ganha uma nova força nos seus riffs, pois a orquestra eleva a intensidade de uma música que, segundo Lars, é inspirada numa relação pai-filho.

Após ter sido inevitável tocar guitarra invisível, as luzes do palco ainda se estavam a apagar e já a banda avançava para The Memory Remains (Reload, 1997), outra repetente de há 20 anos, que não trouxe nada de propriamente novo, mas que serviu para pôr muita gente na sala de cinema a cantar e a levantar os braços.

Seguiram-se duas novidades do último álbum, Hardwired… to Self-Destruct (2016), Confusion e Moth Into Flame, que vieram reafirmar que os Metallica ainda sabem ‘fazer heavy-metal’, sendo que por momentos nos esquecemos do background clássico que acompanha a banda.

Segue-se The Outlaw Torn (Load, 1996), uma velha conhecida de “S&M”, que faz de James Hetfield um narrador capaz de preencher uma música de nove minutos com drama e claro, com a ajuda de uns arranjos, fazem desta uma versão mais interessante comparativamente à original de estúdio. No Leaf Clover e Halo On Fire vieram fechar a primeira parte do concerto, sendo que a última, podendo haver uma troca na setlist, seria a preterida.

James Hetfield

O segundo ato começa com a orquestra norte-americana e Michael Tilson Thomas a conduzir a peça Scythian Suite, Op.20, Second Movement, de Sergei Sergeyevich Prokofiev, compositor russo do século XX. De seguida, algo totalmente novo. O compositor introduziu a próxima peça, Iron Foundry, como “o ponto onde a música clássica e o heavy metal se encontram“. Numa composição que tenta desmistificar as máquinas e a tecnologia, a banda aventura-se em ritmos arrojados, onde a distorção da guitarra de Kirk Hammett é o elemento mais estranho e inovador desta excelente colaboração avant-garde.

O espetáculo continua com uma arrebatadora versão de The Unforgiven III, de Death Magnetic, onde James Hetfield dá voz à dramática melodia da Orquestra de São Francisco – uma actuação soberba, capaz de arrancar aplausos na sala de cinema. Segue-se All Within My Hands, a música que dá nome à instituição acima referida, e a única música do polémico álbum de 2003, St. Anger, num registo acústico e íntimo, que ganha uma beleza adicional graças à secção de cordas por parte da orquestra.

Depois fiquei de boca aberta com o que aconteceu, pois isto sim, é uma homenagem. Scott Pingel, o baixista principal da Orquestra Sinfónica de São Francisco, trouxe à Terra Cliff Burton, antigo mestre da viola baixo dos Metallica e falecido em 1986, com a música (Anesthesia) Pulling Teeth, do primeiro álbum da banda, Kill ‘em All (1983). Um solo arrebatador com sons hipnóticos vindos do baixo de Pingel que trouxeram muitas saudades de Cliff, tendo Lars completado a versão original da música entrando a meio para fazer a parte que lhe competia, tal e qual como há 36 anos atrás.

Entramos assim nos clássicos, todos eles já conhecidos do concerto de há 20 anos. Wherever I May Roam e One, pertencentes ao Black Album (1991) e ao …And Justice for All (1988) respetivamente, reavivaram as memórias dos anos de ouro da banda, que mais uma vez beneficiam de toda uma orquestra que torna os temas mais intensos, acompanhados por efeitos visuais já familiares para quem já viu os Metallica ao vivo.

Master Of Puppets, do álbum de 1986 com o mesmo nome, valeu um efeito de ‘micro-loucura’ na sala de cinema, sendo que esta pequena ópera fez questão de ser uma das melhores performances de sempre no que toca à parceria ‘heavy-metal – música clássica’.

O final do concerto dá-se com as obrigatórias Nothing Else Matters e Enter Sandman, ambas do Black Album. Estas não deixaram ninguém indiferente, dando mesmo a sensação de termos sido transportados para o Chase Center. Os arranjos orquestrais para a Nothing Else Matters conseguem catapultar a música para algo intenso e bom de se ouvir, fazendo-nos esquecer as mil e uma vezes que ouvimos este tema na rádio, que nos leva a pensar “Fogo, já estou farto desta música. Mas é uma excelente canção”. Enter Sandman fecha um concerto incrível à la Metallica, a mesma que encerrou o concerto deste ano no Estádio do Restelo, no feriado de um de Maio.

“S&M2” foi capaz de reaproximar a banda de novo ao seu lado mais experimental, convencendo os fãs de que projectos novos serão sempre bem-vindos. Vi um conjunto de músicos que estiveram sempre conectados na mesma corrente, independentemente do seu instrumento ou função. Vi cumplicidade e alegria por parte dos Metallica, que sempre se demonstraram abertos a novas formas de expandir a sua arte. Vi um projecto com cabeça, tronco e membros.

Tudo isto foi possível também graças ao realizador Wayne Isham e à sua equipa de produção, que soube através da imagem dar relevância aos personagens principais (músicos), e ao seu imprescindível público, que veio de todo o mundo (sim, a bandeira portuguesa estava lá e mereceu um plano de destaque, que arrancou automaticamente muitas palmas na sala de cinema) para apoiar a banda, uma família. “Together Again”, assim foi e ainda bem que ficou gravado, pois merecemos ouvir isto tudo de novo.