domingo, 6 de setembro de 2020

“S&M2”: MAIS DO QUE UM CONCERTO, HISTÓRIA...

 

Nas noites de seis e oito de setembro de 2019, o recente inaugurado Chase Center, em São Francisco na Califórnia, recebeu o 20.º aniversário do concerto “S&M” dos Metallica. A banda composta por Lars Ulrich, James Hetfield, Kirk Hammett e Robert Trujillo, decidiu compensar os fãs da melhor forma, tocando dois novos concertos com a Orquestra Sinfónica de São Francisco. O resultado não podia ser mais empolgante, revelando assim uma banda mais madura e novidades comparativamente à setlist de há 20 anos atrás. A banda norte-americana veio reafirmar que na música tudo é possível, e é possível de se o fazer bem.

Na sua estreia mundial, “S&M2” começa com uma contextualização de todos os preparativos do evento, onde é feita uma retrospectiva do que foi o projecto “S&M” em 1999, na altura dirigido pelo compositor Michael Kamen. Os artistas revelam que para este novo concerto todos os arranjos e preparativos foram pensados sempre em sintonia com a banda, podendo assim criar uma obra sincera e, em especial, para a Metallica Family. De realçar também o papel social da banda, que apresenta algumas iniciativas da sua instituição “All Within My Hands (https://www.allwithinmyhands.org/welcome.html), que tem como objectivo principal ajudar pessoas na sua formação académica e profissional, tendo já comparticipado centenas de comunidades e escolas.

Mas vamos à musica! Com Michael Tilson Thomas a liderar a ‘segunda banda’, a abertura do concerto faz-se com a clássica The Ecstacy Of Gold, de Ennio Morricone, que os Metallica utilizam como abertura dos seus concertos (em cassete) desde 1984. Esta foi protagonizada pela famosa cena do filme “O Bom, o Mau e o Vilão” (Sergio Leone, 1966) e teve uma performance épica, num crescendo que faz arrepiar os mais insensíveis. Seguiu-se The Call Of Ktulu, do álbum Ride The Lightning (1984), famosa já pela sua interpretação com orquestra em 1999, não desapontando quem já tinha saudades desta versão, e afirmando que o resto do espetáculo só poderia correr bem.

E assim foi, sem espaço para respirar, For Whom The Bell Tolls, do mesmo álbum de 1984, chega para pôr o público a cantar, pois a sua energia vai mais além do silêncio exigido em frente ao grande ecrã. The Day That Never Comes, do álbum Death Magnetic (2008), é a primeira nova experiência em comparação a “S&M” e ganha uma nova força nos seus riffs, pois a orquestra eleva a intensidade de uma música que, segundo Lars, é inspirada numa relação pai-filho.

Após ter sido inevitável tocar guitarra invisível, as luzes do palco ainda se estavam a apagar e já a banda avançava para The Memory Remains (Reload, 1997), outra repetente de há 20 anos, que não trouxe nada de propriamente novo, mas que serviu para pôr muita gente na sala de cinema a cantar e a levantar os braços.

Seguiram-se duas novidades do último álbum, Hardwired… to Self-Destruct (2016), Confusion e Moth Into Flame, que vieram reafirmar que os Metallica ainda sabem ‘fazer heavy-metal’, sendo que por momentos nos esquecemos do background clássico que acompanha a banda.

Segue-se The Outlaw Torn (Load, 1996), uma velha conhecida de “S&M”, que faz de James Hetfield um narrador capaz de preencher uma música de nove minutos com drama e claro, com a ajuda de uns arranjos, fazem desta uma versão mais interessante comparativamente à original de estúdio. No Leaf Clover e Halo On Fire vieram fechar a primeira parte do concerto, sendo que a última, podendo haver uma troca na setlist, seria a preterida.

James Hetfield

O segundo ato começa com a orquestra norte-americana e Michael Tilson Thomas a conduzir a peça Scythian Suite, Op.20, Second Movement, de Sergei Sergeyevich Prokofiev, compositor russo do século XX. De seguida, algo totalmente novo. O compositor introduziu a próxima peça, Iron Foundry, como “o ponto onde a música clássica e o heavy metal se encontram“. Numa composição que tenta desmistificar as máquinas e a tecnologia, a banda aventura-se em ritmos arrojados, onde a distorção da guitarra de Kirk Hammett é o elemento mais estranho e inovador desta excelente colaboração avant-garde.

O espetáculo continua com uma arrebatadora versão de The Unforgiven III, de Death Magnetic, onde James Hetfield dá voz à dramática melodia da Orquestra de São Francisco – uma actuação soberba, capaz de arrancar aplausos na sala de cinema. Segue-se All Within My Hands, a música que dá nome à instituição acima referida, e a única música do polémico álbum de 2003, St. Anger, num registo acústico e íntimo, que ganha uma beleza adicional graças à secção de cordas por parte da orquestra.

Depois fiquei de boca aberta com o que aconteceu, pois isto sim, é uma homenagem. Scott Pingel, o baixista principal da Orquestra Sinfónica de São Francisco, trouxe à Terra Cliff Burton, antigo mestre da viola baixo dos Metallica e falecido em 1986, com a música (Anesthesia) Pulling Teeth, do primeiro álbum da banda, Kill ‘em All (1983). Um solo arrebatador com sons hipnóticos vindos do baixo de Pingel que trouxeram muitas saudades de Cliff, tendo Lars completado a versão original da música entrando a meio para fazer a parte que lhe competia, tal e qual como há 36 anos atrás.

Entramos assim nos clássicos, todos eles já conhecidos do concerto de há 20 anos. Wherever I May Roam e One, pertencentes ao Black Album (1991) e ao …And Justice for All (1988) respetivamente, reavivaram as memórias dos anos de ouro da banda, que mais uma vez beneficiam de toda uma orquestra que torna os temas mais intensos, acompanhados por efeitos visuais já familiares para quem já viu os Metallica ao vivo.

Master Of Puppets, do álbum de 1986 com o mesmo nome, valeu um efeito de ‘micro-loucura’ na sala de cinema, sendo que esta pequena ópera fez questão de ser uma das melhores performances de sempre no que toca à parceria ‘heavy-metal – música clássica’.

O final do concerto dá-se com as obrigatórias Nothing Else Matters e Enter Sandman, ambas do Black Album. Estas não deixaram ninguém indiferente, dando mesmo a sensação de termos sido transportados para o Chase Center. Os arranjos orquestrais para a Nothing Else Matters conseguem catapultar a música para algo intenso e bom de se ouvir, fazendo-nos esquecer as mil e uma vezes que ouvimos este tema na rádio, que nos leva a pensar “Fogo, já estou farto desta música. Mas é uma excelente canção”. Enter Sandman fecha um concerto incrível à la Metallica, a mesma que encerrou o concerto deste ano no Estádio do Restelo, no feriado de um de Maio.

“S&M2” foi capaz de reaproximar a banda de novo ao seu lado mais experimental, convencendo os fãs de que projectos novos serão sempre bem-vindos. Vi um conjunto de músicos que estiveram sempre conectados na mesma corrente, independentemente do seu instrumento ou função. Vi cumplicidade e alegria por parte dos Metallica, que sempre se demonstraram abertos a novas formas de expandir a sua arte. Vi um projecto com cabeça, tronco e membros.

Tudo isto foi possível também graças ao realizador Wayne Isham e à sua equipa de produção, que soube através da imagem dar relevância aos personagens principais (músicos), e ao seu imprescindível público, que veio de todo o mundo (sim, a bandeira portuguesa estava lá e mereceu um plano de destaque, que arrancou automaticamente muitas palmas na sala de cinema) para apoiar a banda, uma família. “Together Again”, assim foi e ainda bem que ficou gravado, pois merecemos ouvir isto tudo de novo.