Morreu, aos 94 anos, Charles Aznavour, figura maior da canção popular francesa, voz que cruzou gerações e autor a quem muitos outros deram novas vidas. Era muitas vezes comparado a Frank Sinatra pelo tom melancólico do seu canto e pelo charme que moldava a sua pose e imagem. Porém, ao invés de Sinatra, Charles Aznavour era um autor e, mesmo tendo interpretado alguns temas de outros autores, a esmagadora maioria da sua obra fez-se com gravações e interpretações em palco de canções que ele mesmo escreveu. Ao todo deverão ser na ordem das 1300 as composições que Charles Aznavour deixou e que constituem um importante corpo da história da canção popular francesa do século XX. Estava, porém, longe de pensar que um dia, voluntariamente, colocaria um ponto final numa carreira que ainda mantinha ativa uma agenda de palcos. Há dois anos, muitos certamente recordam a sua derradeira atuação portuguesa, no palco da Altice Arena. Agora tinha acabado de regressar de uma digressão pelo Japão e no último verão só não deu mais concertos porque uma queda lhe partiu um braço. O presidente francês Emmanuel Macron, depois de um primeiro tweet ter destacado as suas raízes arménias e o facto de “ter acompanhado as alegrias e dores de três gerações”, revelou já que o tinha convidado para atuar este mês em Erevan (na Arménia) no âmbito de um encontro de países francófonos…
A relação de Charles Aznavour com a música começou bem cedo quando, ainda bem pequeno, ainda sob o seu nome real Shahnourh Varinag Aznavourian, começou a cantar em pequenos espetáculos locais. Filho de emigrantes arménios, nasceu no bairro parisiense de Saint Germain des Près em 1924 e, durante a ocupação nazi, ele e a família ajudaram a esconder judeus no seu apartamento. Por essa altura tinha já desenvolvido uma admiração particular por nomes da canção francesa como Maurice Chevalier ou Charles Trenet. Tinha já um trabalho regular de escrita de canções (inicialmente em parceria com Pierre Roche) quando, depois da guerra, é notado por Edith Piaf que o chama para trabalhar a seu lado. Durante algum tempo Aznavour esteve sob a sua sombra, mas na década de 50 as canções que escreve para Gilbert Bécaud e as que ele mesmo começa a gravar nos seus discos dão-lhe visibilidade que o liberta e transporta para um espaço de protagonismo na música francesa que o acolhe como um dos grandes da segunda metade do século XX.
Grava inúmeros discos criando uma discografia que recua aos tempos dos 78 rotações e que acompanhou o LP quase desde os primeiros passos deste formato. Edita mais de cem álbuns e mais de 400 singles e EPs, construindo uma obra com dimensão internacional que, no plano das vendas, terá alcançado números na ordem dos 180 milhões de exemplares. Mas mais do que os números e a soma dos êxitos, a obra de Aznavour abriu caminhos importantes no plano das ideias. Foi dos primeiros a cantar questões de identidade num plano mainstream, colocando na sua voz as experiências de algumas minorias. Queria, como ele mesmo chegou a explicar, “quebrar tabus” como, por exemplo, o fez em Comme Iles Disent (originalmente incluído no álbum de 1972 Idiote Je T’Aime), onde canta sobre homofobia. A canção teria, nos anos 90, uma versão brilhante por Marc Almond, que a cantou em inglês (com o título What Makes a Man a Man) no concerto 12 Years Of Tears no Royal Albert Hall. Anos antes, em 1955, uma outra canção sua, Après L’Amour, tinha gerado um “caso” pelo modo como as palavras descreviam o ambiente entre um casal depois de um ato sexual.
A força das palavras, o fulgor do intérprete, são elementos na história de uma figura que talhou uma relação particular com Portugal através do seu relacionamento com Amália Rodrigues, para quem compôs Aïe Mourrir Pour Toi. As versões são parte de uma vasta história feita de canções, de discos, de filmes (que envolvem realizadores como Truffaut e Chabrol, entre outros), que fazem de Aznavour um daqueles seres maiores que a história da música não vai nunca esquecer.
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