O quarteto que surgiu em 1977 era composto por um ex-baterista de jazz introvertido, um baixista que movia os pés como um pinguim e um jovem silencioso de cabelo comprido. A este trio juntava-se um guitarrista que entrava em palco de impermeável e cabelo despenteado – parecia ter passado o dia a trabalhar como estafeta. O frontman deste belo ramalhete era filho de um arquiteto judeu, cujas simpatias comunistas o obrigaram a fugir da Hungria. Os pais estabeleceram-se em Glasgow, na Escócia, onde Mark nasceu, tendo passado a infância na cidade inglesa de Newcastle, de onde a mãe era originária.
A voz grave de Knopfler contrastava com os sons líricos que extraía da guitarra, característica que mantém. Os tons de diamante da Stratocaster pontuam a beleza das melodias. Mark tem tido sempre uma dualidade: Temas românticos contrapostos a análises mais sombrias e irónicas dos tempos. Um cronista musical com influências literárias, criou temas em que o tom resignado se associa a frases de guitarra melodiosas.
OS QUATRO DO APOCALIPSE
«Dire Straits» significa «Mark Knopfler». Com uma imagem que faria estremecer qualquer publicitário nos dias de hoje, o grupo passara meses a ensaiar num cubículo fumarento de um apartamento minúsculo em Deptford, Londres. «Dire Straits» (terríveis apertos) foi o comentário de um amigo às condições em que os quatro viviam. Mark era, já nessa altura, o génio por detrás do som. Um dos guitarristas mais elegantes de sempre, criou uma sonoridade fluída, versátil e veloz, inspirando-se em Chet Atkins e J.J. Cale. “As pessoas mais criativas são esponjas”, disse certa vez. “Absorvem uma coisa e expulsam outra.” Usava poucos efeitos, apenas um compressor e um pedal de volume.
Depois de absorver o boogie-woogie, a country e os blues, o canhoto Knopfler foi obrigado a tocar violino como um destro. Mais tarde, ao dormir em casa de amigos, pegou numa guitarra acústica com cordas finas e descobriu que, ao apoiar dois dedos na caixa com a mão direita, conseguia extrair um som diferente. Adormeceu a tocar guitarra e a ver Once Upon a Time in the West. E o estilo foi-se desenvolvendo.
Quando era jornalista, passava as noites a tocar guitarra. Primeiro, um acorde, depois outro. Quando eram cinco da manhã, deitava-se e, de manhã, alguém da redacção dizia, “telefonem ao Knopfler”. Os colegas estranhavam o ar sonolento. De início, era lento na máquina de escrever, mas começou a acertar com as teclas, “tal como acertava com as notas da guitarra”.
“Não canto bem. Tentei fazer da guitarra a minha voz.” Desde que deixou de fumar, Knopfler fez progressos vocais, que se podem notar em todos os álbuns a partir de Shangri-La. Em All the Roadrunning, álbum de duetos com Emmylou Harris, compôs quase todos os temas e canta harmonias sem problema, o que é um feito, já que está ao lado da rainha da country.
NÃO HÁ DEMOCRACIA NAS BANDAS
Os quatro músicos gravaram uma “demo” enviada para o DJ Charlie Gillett, que reconheceu algo de inovador numa canção chamada «Sultans of Swing». Utilizando a guitarra como extensão e complemento da voz, Knopfler tornou conhecido o seu apelido húngaro. Assistira a um grupo de músicos de jazz a tocar num pub londrino e fez disso uma história. Adicionou-lhe um solo matemático sobreposto a três acordes, que, apesar de não ser uma pirotecnia, provou ser eficaz.
Os Dire Straits fizeram várias digressões longas e esgotantes pelos Estados Unidos, com Knopfler a acabar, a maior parte do tempo, num dos lugares da frente da camioneta, incapaz de comunicar com a banda ou com o público, mergulhado numa depressão. Motivo: Holly Beth Vincent, a vocalista dos Holly and the Italians. Os Straits regressaram com o seu melhor álbum Making Movies, em 1980. «Romeo and Juliet», uma das suas melhores canções, foi diretamente inspirada na relação com Holly Vincent, que o guitarrista sempre se escusou a comentar. A cantora disse, numa entrevista, “oh, Knopfler, yes, I used to have a scene with him”, afirmação que o feriu e que é citada no tema.
O irmão, David, incentivou-o a escrever algo sobre o tempo em que eram miúdos em Newcastle, e iam ao parque de diversões. O resultado foi «Tunnel of Love». O produtor Jimmy Iovine comentou: “O álbum parece uma música inteira.” Mark desentende-se com David durante as gravações e despede o irmão. Começa a ser considerado um mastermind, mas também um indivíduo calculista.
“Os grupos não funcionam com base na democracia. É raro. Tem de existir alguém que lidere. E o Mark era indiscutivelmente essa pessoa”, comentou um observador. “Isso trouxe-lhe muitos dissabores.”
Em 1983, produziu Infidels, de Bob Dylan. As coisas nem sempre correram bem e Knopfler terá abandonado uma das sessões bastante perturbado. Quando entrevistei Mick Taylor, ex-guitarrista dos Rolling Stones, perguntei-lhe como correram as gravações. Este respondeu que gostou imenso de trabalhar com Dylan, mas que Knopfler lhe inspirou uma certa antipatia, já que se comportava de modo “ditatorial”. Contudo, há muitos anos que Dylan não tinha um álbum tão bem produzido.
O baterista Pick Withers foi a baixa seguinte. “Se continuasse nos Dire Straits, seria milionário por esta altura, mas não sei que tipo de pessoa seria.” A partir daqui, Knopfler começou a contratar músicos e a dizer-lhes exatamente o que tocar.
“TUDO TEM DE SE ENCAIXAR”
A principal característica de Mark Knopfler é a diversidade do seu talento enquanto guitarrista, compositor, letrista, produtor, alguém que possui uma visão global da música. As palavras que utiliza são musicáveis, perfeitamente enquadradas na melodia como um tiquetaque, ao estilo da música brasileira. Escolhe guitarras de determinado ano para um solo e regozija-se com esses desafios. “Tudo tem de se encaixar. Adoro fazer digressões, gravar, ensaiar, todos os aspetos desta profissão. Se assim não for, acaba em lágrimas. É preciso um grande ímpeto para lançar uma banda de garagem. Se não o tens, esquece”, referiu numa entrevista.
Em 1988, antes do concerto de homenagem a Nelson Mandela, afirmou: “Tudo isto, atrás de mim [apontando para as guitarras e equipamento] não significa nada. Tive os meus filhos e apercebo-me que tocar num palco é entusiasmante, mas não deixa de ser uma treta completa.”
Contudo, Mark Knopfler faz discos porque quer, já é multimilionário desde meados dos anos 80. Não queria ressuscitar os Dire Straits para o último disco e digressão de On Every Street. Foi pressionado pelas dificuldades económicas dos outros elementos e também pelo interesse dos fãs.
“Um executivo da editora diz-nos que quer um novo álbum. Mas é diferente quando um tipo nos vem arranjar o vídeo a casa e diz, ‘olá, Mark, para quando um novo disco?’”
Com o renascimento de Golden Heart, em 1996, Knopfler começou a utilizar mais a Gibson Les Paul, explorando uma sonoridade densa. A sua costela escocesa revelou-se na música que compôs. “Pensei que era irlandesa. Mas um dos músicos disse-me, ‘não, é escocesa’. E perguntei-lhe, ‘como sabes?’ E ele respondeu, ‘nota-se pelos intervalos’.” Colaborou com os Chieftains e, no DVD A Night In London, agradeceu a colaboração de alguns elementos, depois de um tema: “Vemo-nos no bar…”
O fim dos Straits coincidiu com a estabilidade emocional que encontrou com a atriz Kitty Aldridge, há mais de 15 anos, embora Mark continue a abordar o romantismo do ponto de vista de um Gershwin. O trilho de migalhas de pão – citado em «True Love Will Never Fade» – conduz o narrador ao sítio onde deveria estar. Um tema sobre um artista de tatuagens assume, deste modo, um significado ambivalente.
O REPÓRTER MUSICAL
As suas canções, embora se tenham tornado estandartes do rock FM, baseiam-se sempre em ideias. Ao ouvir os reparos de um lojista acerca das estrelas da MTV, Knopfler escreveu «Money for Nothing». «Calling Elvis» inspira-se numa frase do cunhado, “quando tentas telefonar à tua mulher, parece que estás a ligar ao Elvis”.
«Brothers in Arms» foi inspirada por uma frase do pai, durante a guerra nas Falkland:
“Disse-me que os russos e os argentinos eram camaradas de armas. Que a Rússia comunista era ‘camarada de armas’ com a ditadura militar da Argentina. E o termo ficou-me, embora a canção não seja sobre isso. Lembrei-me de um soldado a morrer no campo de batalha, talvez com alguns camaradas à volta… e a ideia de mundos antagónicos dentro de um só mundo. Julgo que deve ter passado pela cabeça de muitas pessoas, quando estão à beira do penhasco… é estúpido. Somos estúpidos em participar em qualquer guerra.”
Mark Knopfler escreveu «Private Dancer», durante as sessões de Love Over Gold, mas achou que o tema precisava de uma vocalista. Encontrou-a em Tina Turner, ofereceu-lhe a canção e deu um impulso decisivo ao relançamento da cantora, nos anos 80. Foi distinguido em 1993 pela Universidade de Newcastle e, em 1995, pela Universidade de Leeds. Recebeu uma terceira honra da Universidade de Sunderland, reconhecendo o seu trabalho excecional enquanto músico.
O detetive Marlowe, de Raymond Chandler, inspirou «Private Investigations». «Your Latest Trick» baseia-se num dia em que regressava do estúdio, em Nova Iorque. “Os taxistas, uma canção no rádio… sempre gostei da ideia dos camiões de lixo nova-iorquinos. São gigantescos, monstruosos e fazem um ruído incrível. São bestas pré-históricas. Uma coisa leva à outra. Temos fragmentos e, muitas vezes, construímos as canções a partir disso.”
Escreveu sobre dois paparazzi em «Vic and Ray», sobre as mulheres viciadas em compras em «Imelda», sobre um fã fanático em «Rüdiger», ou sobre os excessos dos “roadies” em «Heavy Fuel». Descreveu o West End londrino, e relatou “um penoso espetáculo de cabaré gay” em Munique, no tema «Les Boys». Muito do álbum On Every Street, que marcou o regresso dos Dire Straits em 91, é negro e opressivo, o que se deve à fase terminal do seu segundo casamento.
O HOMEM NÃO MUDOU MUITO
«Ticket to Heaven» é uma crítica mordaz aos evangelistas televisivos, enquanto «Devil Baby», em tom irónico, descreve os tristes espetáculos dos reality shows de Jerry Springer. Os Estados Unidos sempre fascinaram o músico a vários níveis. Porém, Mark observa o país a três dimensões. Nem Ray Kroc – fundador da McDonalds – escapa à ironia de Knopfler, que lhe dedicou «Boom Like That», equiparando-o a um crocodilo… Em «Don’t Crash the Ambulance», Knopfler imagina vários conselhos que Bush pai terá dado a Bush filho, elaborando uma crítica sarcástica à agressiva política externa da presidência e à intervenção no Iraque:
“We don’t like accidents/Major or minor/You don’t want yourself an incident/don’t ever invade China.” Na voz de Bush pai, afirma: “You can’t move the barriers/You can’t mess with oil and gas/Had to go down there/Stick a couple/Aircraft carriers/In his ass…”
Outro tema, «Secondary Waltz», foi inicialmente gravado nas sessões de Golden Heart, antes de surgir em Kill to Get Crimson, sendo divulgado em discos piratas. Originalmente, possuía um estilo sincopado, reaparecendo com uma sonoridade folk. O tema foca o antigo professor de ginástica de Knopfler, um escocês, ex-militar e rígido, que ensina os alunos a dançar. As crianças “dançam a valsa com medo nos corações”. Knopfler demorou anos a encontrar a música certa. “Não me preocupo demasiado se a melodia não surge. Espero que aconteça, nem que demore 40 anos”. A letra de «Rüdiger», por exemplo, foi escrita aquando do assassínio de John Lennon, mas a canção só seria gravada 16 anos depois.
Em «Iron Hand», a “mão de ferro” remete para “dama de ferro”. O tema é resultado de mais uma reflexão. Ao assistir, na TV, à carga violenta das tropas montadas a manifestantes, durante o governo de Margaret Thatcher, Knopfler lembrou-se da época medieval e concluiu que o Homem não mudou muito.
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