Ao chegarem ao terceiro álbum, os Tindersticks apresentariam o seu mais bem polido registo que alguma vez haviam feito... No primeiro disco espalharam as pistas e diversas direcções por onde esta banda indie poderia seguir para o seu futuro. Ao segundo registo, escolheram focar-se só nalgumas dessas direcções e fizeram um disco maravilhoso, com nervo, daqueles que ficam tatuados. Ao terceiro, bem... depuraram ainda mais o som único que detinham. Sublimaram tudo o que bem sabiam fazer de maneira quase épica. Não se resignaram em meramente o fazer, eles apresentaram num nível elevadíssimo, até mesmo para eles.
Na altura, em 1997, as mais importantes publicações dedicadas à critica musical não se evitaram de enaltecer efusivamente esta nova obra da banda. Algumas disseram assim:
"Q" (Absolutely tremendous.);
"Uncut" (The greatest record on earth. Their music lifts up my soul.);
"New Musical Express" (Tindersticks have never been better.)...
Digo igualmente que sim, pois "Curtains" afigurou-se um álbum verdadeiramente marcante, megalómano, pomposo, orquestrado, sedutor, viciante... mas também exibe intenção, quando nos anteriores registos havia espontaneidade. De certa forma, para fazerem um grandioso disco, elaborado e tão pensado assim, todo o processo igualmente criou um enorme problema para a saúde da banda. Problemas esses que se deram ao longo do desenvolvimento e depois de sair para o mercado. Internamente, a banda sentiu-se obrigada a ter de dar uma boa resposta ao enorme sucesso que certos temas do segundo álbum obtiveram (do calibre de "Tiny Tears", por exemplo), e que eram recebidos em apoteose nos concertos. A banda superou a árdua tarefa com um disco superlativo... mas isso criou estragos internos, que viriam a conduzir a desistências e desentendimentos entre os membros. Depois de "Curtains" os Tindersticks nunca mais foram os mesmos e nunca mais repetiram a exímia fórmula exibida em 1997. Valeu-nos, aos fãs, a grande capacidade de reinvenção que a banda sempre desfilou e também ao grande Stuart Staples ao leme...
Destaco deste álbum as faixas:
"Another Night In", "Rented Rooms", "Ballad Of Tindersticks", "Buried Bones" o dueto com Ann Magnuson, "Bathtime" e por fim, as duas belíssimas seguintes faixas que podem ser escutadas "Don't Look Down" e a "Let's Pretend" (talvez a melhor canção de sempre da banda).
O homónimo longa-duração de estreia dos Tindersticks, foi um marco no rock indie... É um disco cru quando quer, é delicado quando precisa, é deslumbrante quando querem seduzir, é profundo quando quer deixar marcas... e instala em quem o souber apreciar, a vontade de se encontrar com este som de novo.
Os Tindersticks, antes da estreia deste primeiro álbum, já haviam lançado singles, tendo sido "Kathleen" (a primeira canção deles), o que despertou os mais atentos.
Antes de terem este nome também se chamaram os Asphalt Ribbons.
Distinguiam-se por uma sonoridade rock, marcadamente indie, melancólica, cantada ao mais puro estilo crooner, mantendo as influências do rock de recorte mais clássico.
Muito criativos e multi-instrumentistas, pois recorreram desde sempre aos mais variados instrumentos, desde os xilofones, pianos, violinos, incluindo pequenas orquestras com cordas e sopros, sempre em sintonia com os instrumentos convencionais de uma banda rock. Eram estas as coordenadas que a banda apontava, apesar de se perceber que exploravam sem saber na realidade que rumo avançar. Tantas eram as possibilidades que apresentavam, que rapidamente se tornaram num grande sucesso underground.
"Tindersticks (1)", é daqueles discos que requer a dedicação de quem o ouve para ele se abrir verdadeiramente. Tanto abordam o rock ao estilo velvetiano com voz à Lou Reed, como sugerem saber fazer uma boa torch song, ou mais ainda uma incursão mariachi e algumas experiências sonoras interessantes.
Destaco deste 1º registo faixas memoráveis como:
"Nectar", "Blood", "City Sickness" (das melhores de sempre, até hoje), "Marbles" (excelência, magnifica e soa a puro Velvet Underground), "Jism", "Her" e muito especialmente outro ponto alto de todo o disco que é a "Raindrops" (que muito me faz lembrar um valsa...).
"Raindrops"
Curiosidade: inicialmente esta canção teve o título de "The Big Silence"...
Vinicius de Moraes nasceu no Rio de Janeiro, no dia 19 de Outubro de 1913. Foi aquele poeta que qualquer cantor queria ter por perto. O poetinha, que também foi diplomata, jornalista e dramaturgo, transpirava poesia. Era impossível não ficar rendido aos seus sonetos, à sua eterna arte de seduzir e conquistar através da palavra.
A vida boémia e de excessos que levou durante cinco décadas não permitiu tê-lo entre o reino dos vivos mais de sessenta e seis anos, mas a genialidade dos seus textos deram-lhe um visto gold para a eternidade, através das belíssimas canções que nasceram da sua caneta.
Sem surpresa, Vinicius cantou o Amor. De uma maneira intensa e persuasiva, bela e provocante, a que ninguém ficava indiferente. Foi ele o criador da imortal “Garota Ipanema” que desarma qualquer um no primeiro verso “Olha que coisa mais linda” e termina de modo sublime “Ah, se ela soubesse/ Que quando ela passa/ O mundo inteirinho se enche de graça/ E fica mais belo/ Por causa do amor”.
Vinicius eram um excelente parceiro. Além da eterna parceria com o uísque, formou nove parcerias conjugais dando razão a uma das suas mais célebres frases – “O Amor é eterno enquanto dura” -, mas aquelas que ficaram mais célebres foram as que assinou com Toquinho, Tom Jobim, João Gilberto, Chico Buarque, Carlos Lyra.
Há várias canções escritas por Vinicius que revisito, de quando em vez, no entanto há duas que aprecio pela sua qualidade poética, simplicidade e pelo impacto que tiveram na carreira do poetinha e de outros nomes grandes da cultura brasileira: “Chega de Saudade” e “Eu sei que vou te amar”. São dois saborosos frutos da parceria com o amigo Tom Jobim, nos maravilhosos anos cinquenta, da música popular brasileira.
No poema “Chega de saudade”, Vinicius declara a saudade como uma coisa triste e causador de sofrimento. Ele que sempre foi um prático, achou que as saudades eram coisa para morrer entre “abraços apertados, beijos e carinhos”. Curiosamente há outro texto do poetinha em que ele reconhece todas as agruras e sofrimentos do Amor. Em “Tempo de Amor”, Vinícius declara:
”Ah, bem melhor seria
Poder viver em paz
Sem ter que sofrer
Sem ter que chorar
Sem ter que querer
Sem ter que se dar
Mas tem que sofrer
Mas tem que chorar
Mas tem que querer
Pra poder amar”
Como diria o grande Camões, Vinicius é um fogo que arde e que se vê. Nas suas poesias, há sempre paixão, erudição e muito amor. Reservei para o final, o poema de Vinicius de Moraes que mais gosto – Eu sei que vou te amar -, cujos méritos são sobejamente conhecidos, de tal forma que grandes vultos da música brasileira como Caetano Veloso, Tom Jobim, Ivete Sangalo, Elis Regina e Ana Carolina não resistiram a cantá-lo. Vale sempre a pena ouvi-lo, em qualquer interpretação.
Há mais de cinquenta anos que Bob Dylan batia à porta do céu com músicas e letras brilhantes como Like a Rolling Stone, Mr. Tambourine Man, Knockin´on a Heaven´s Door, Blowin´in the Wind, Don´t Think twice – It´s All Right, mas não podia ganhar prémios porque fumava umas “coisas esquisitas”, apesar das muitas coisas acertadas que as suas músicas «diziam».
Os anos foram passando e Dylan entrou no Olimpo dos grandes criadores onde assistia ao longo cortejo da mediocridade. De tempos a tempos, a velha lenda do rock americano lá se saía com mais uma música/letra incomodativa como “Things Have Changed”, em 2000, arrebatando o Globo de Ouro para melhor canção original do filme que lhe encomendou a banda sonora. No dia 13 de Outubro de 2016, aos 75 anos, a Academia Nobel resolveu usar Bob Dylan para dar um forte abanão num prémio – o Nobel da Literatura - que corria o risco de cristalizar e se institucionalizar. Finalmente a Academia Sueca percebeu que a grande literatura está muito para além dos livros. Muitos letristas e compositores de músicas foram e são grandes poetas. Mais revolucionários e interventivos na sociedade que tantos escritores clássicos.
A escolha de Bob Dylan para Prémio Nobel da Literatura simboliza essa mudança de paradigma. Por isso, este foi um dia importante para a literatura, para a poesia, para a música, para o próprio Prémio Nobel. Dylan foi usado como uma verdadeira pedrada no charco em que ameaçava cair este prestigiado prémio. E talvez seja esse o seu grande contentamento. Por uns tempos, vamos ouvir Dylan e prestar atenção à sua mensagem. Não vamos pensar nas coisas que ele fumava, mas nas coisas que escrevia e cantava. Podia ter sido outro? Podia. Podia ter sido, por exemplo, Chico Buarque, mas Dylan é americano e todos nós sabemos que uns são mais iguais que outros, como há «armas» que acertam melhor no alvo que outras.
Sobre Bob Dylan, despeço-me com o refrão de Things Have Changed
People are crazy and times are strange
I´m locked in tigth, I´m out of range
I use to care, but things have changed
Na verdade, as coisas mudaram, mas ele nunca deixou de se importar. Ainda bem para nós.
Nasceu no estúdio, nunca foi tocado ao vivo mas transformou-se num disco fundamental na história da pop. "Revolver" faz 50 anos e continua a motivar a pergunta: será este o melhor álbum dos Beatles?
Todos os discos dos Beatles são bons, mas Revolver é melhor do que os outros. A afirmação é certamente discutível, como são todas as considerações definitivas sobre eventuais “melhores de sempre” seja de quem for, quanto mais dos Beatles. Mas é verdade que Revolver é um dos discos mais importantes e arrojados da banda de Liverpool, uma obra de rutura e procura de nova identidade, tanto sónica como existencial. Foi lançado há 50 anos e continua a ser revolucionário.
A capa de “Revolver” foi desenhada pelo alemão Klaus Voormann
O processo já tinha começado no álbum anterior, Rubber Soul, editado em 1965, menos de um ano antes, mas foi com Revolver que os Beatles começaram de facto a ter outra pele. Em 1966, os quatro de Liverpool estavam numa situação difícil. Cada vez menos confortáveis em palco, onde a sua presença era constantemente exigida mas raras vezes ouvida (tal era o ruído provocado pelas fãs histéricas durante os espetáculos), não conseguiam escapar à fama e aos hits de sempre. O facto daquele momento, em meados dos anos 60, ser um globalmente inspirador em várias esferas artísticas, com uma geração de criadores à procura de novos desafios, ajudou os Beatles a libertarem-se do estigma de rapazes aprumadinhos com canções pop infalíveis. O psicadelismo emergia e tanto George Harrison como John Lennon estavam muito interessados nas portas da perceção que isso poderia abrir-lhes. E enquanto McCartney se interessava por música clássica e apurava rigor e sofisticação na composição, os outros divergiam para territórios mais sujos. Com Revolver, os Beatles deixaram de ser uma banda de singles e passaram à fase adulta, discos com conceito, construídos em estúdio, usando os recursos técnicos à disposição e experimentando com eles.Revolver terá usado 300 horas de estúdio, algo perfeitamente megalómano para a época. Só “Yellow Submarine” (que Ray Davies, dos Kinks, na altura crítico de musica, considerou uma “porcaria” – “a load of rubbish”, nas palavras do artista) levou mais tempo a gravar que todo primeiro álbum do grupo e teve gente como Brian Jones e Marianne Faithfull nos coros.
Overdubs, fitas a andar ao contrário, ruído, repetição e saturação, mas também canções sem guitarras, o som dos Beatles ficou mais denso e desafiante e afastou-os definitivamente dos palcos. Nenhuma das canções de Revolver chegou a ser tocada ao vivo. Era demasiado complicado fazê-lo e o grupo deixou de dar concertos um mês depois da saída do disco. Comecemos pelo fim. Em “Tomorrow Never Knows”, que alguns apelidam a canção mais influente de sempre (até os Chemical Brothers confessam ter sido marcados por ela), Lennon inspirou-se nos escritos de Timothy Leary sobre LSD e o Livro Tibetano Dos Mortos, usou guitarras e cítara a tocar ao contrário, sons de orquestra, vozes processadas, transformou o riso de McCartney no grito de uma gaivota e deu a Ringo espaço para fazer o break de bateria mais hipnótico da pop. Tudo isto pode parecer corriqueiro em 2016 mas, há 50 anos, estas explorações estavam reservadas à música concreta e à library music, não eram do universo pop. “I’m Only Sleeping”, também de Lennon, partilha do mesmo espirito lisérgico, usa gravações ao contrário e anuncia um novo universo de experimentação sónica. “She Said She Said”, não sendo das canções mais proeminentes, parece ter em si, ou no evento que lhe deu origem, as sementes da mudança. A canção surgiu das memórias de uma festa em Los Angeles, em que Lennon tomou LSD com Roger Mcguinn e David Crosby, dos Byrds, e expulsou Peter Fonda da mansão onde estavam porque tinha acabado de ver o novo filme de Jane Fonda (“Cat Ballou”) e não conseguia lidar com os dois irmãos em simultâneo. Esta festa tem contornos míticos e diz muito sobre o estado de espírito dos elementos da banda na altura. Lennon e Harrison tinham experimentado LSD uns meses antes (com o dentista de Harrison, supostamente a figura por detrás da canção “Doctor Robert”) e ambos queriam que Ringo e McCartney fizessem o mesmo, o que estava planeado para esse dia de folga. Ringo terá concordado sem hesitação com o ritual “iniciático”. McCartney recusou e, segundo entrevista de Lennon à Rolling Stone, foi gozado por isso. Foi nesse dia, nessa festa, que Harrison descobriu Ravi Shankar, quando os Byrds tentaram reproduzir a sua música numa guitarra que passava de mão em mão (o que teve consequência em “Norwegian Wood”, de Rubber Soul, a primeira canção ocidental a usar cítara). A experiência terá sido determinante também para Lennon que, um ano depois escreveu “She Said She Said”. A gravação exigiu horas de ensaio antes de chegar ao ponto que Lennon queria, uma canção à beira do colapso, ritmicamente irregular, estranha e poderosa.
É verdade que, em Revolver, é a turbulência emocional e filosófica de Lennon que alimenta a mudança e o lado mais experimental dos Beatles, mas McCartney ganha cada vez mais protagonismo, não só contribuindo de forma decisiva em todo o disco, mas sobretudo assumindo a autoria de algumas das canções mais notáveis, como “Good Day Sunshine”, “For No One” ou “Here, There and Everywhere”, que lembra inevitavelmente Brian Wilson e é muitas vezes comparada a “God Only Knows” (convém lembrar que, na altura, Beatles e Beach Boys desafiavam-se mutuamente: Pet Sounds, a obra suprema dos Beach Boys, foi uma resposta a Rubber Soul e terá motivado Sgt Pepper’s… como uma espécie de contra ataque da banda de Liverpool aos surfistas californianos. Wilson por seu lado iria responder a Sgt Pepper’s… com Smile). Já a “Yellow Submarine”, costumam ser apontadas semelhanças com Bob Dylan. “Eleanor Rigby”, canção de gestação caótica, também é creditada como sendo de McCartney mas é uma das poucas que teve contributo de todos os Beatles. Apesar de triste e desencantada (é sobre uma mulher que morre sozinha) chegou a número 1 do top, onde se manteve várias semanas, e continua a ser das canções mais conhecidas dos Beatles. Só tem cordas e voz e, na sua construção, George Martin inspirou-se nas bandas sonoras dos filmes de François Truffaut. Revolver é também o disco que finalmente dá protagonismo a George Harrison. Toda a influência indiana vem dele, mas há mais que surge do mesmo génio. Harrison assina três canções: a faixa de abertura, “Taxman”, é uma canção de protesto nascida das preocupações com a carga fiscal em Inglaterra, tem algo de Staxx e Motown e há quem aponte ecos de “I Got You” de James Brown, um hit na altura. “I Want To Tell You” e “Love To You” (onde dá largas à paixão pela musica indiana respeitando as suas técnicas e instrumentação) são as outras canções dominadas por Harrison e confirmam-no como compositor de argumentos próprios, um feito difícil, tendo em conta a presença e a rivalidade crescente entre Lennon e McCartney. Um ano depois, Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band veio exacerbar tudo e ganhou o consenso universal, mas é em Revolver, disco que quase se chamou Abracadabra, que de facto começou a transformação da banda de Liverpool. A música pop também nunca mais foi a mesma.
Não é um single. É um super-hiper-mega-blaster single! No rock/pop, talvez seja comparável somente a “Penny Lane”/“Strawberry Fields Forever” ou a “Something”/“Come Together”. Ou, nem isso. Há cinco décadas atrás, os Beach Boys colocaram nas lojas dos EUA as duas melhores faixas da obra-prima chamada Pet Sounds, álbum lançado dois meses antes.
É quase impossível juntar palavras e construir um texto sobre estas duas esculturas sonoras, talhadas na perfeição por um Rodin da música, o génio Brian Wilson.
“Wouldn’t It Be Nice” é um divisor de águas fundamental na obra de Brian e da banda. Foi dele a ideia da letra, composta quase inteiramente por Tony Asher – com contribuição de Mike Love.
Wouldn’t it be nice if we were older – Não seria porreiro se fôssemos mais velhos? - diz o primeiro verso, anunciando a subversão completa e absoluta da lógica de exaltação da juventude e do amor juvenil, temática que fora a espinha dorsal das canções dos Beach Boys até então.
E segue nessa linha: casar, viver juntos, dormir e acordar lado a lado. Tudo isso, claro, com uma melodia sublime.
“…dois minutos de harpas límpidas, imitando os sentimentos adolescentes num tufão do amor, metais que rugem, pequenos sinos alegres, cascatas de cordas, harmonias tão complexas que parecem ter mais em comum com uma missa católica do que um salão de Doo-wop acappella – em resumo, uma ilha da fantasia de anseio musical mais requintado que o que se possa imaginar”, escreveu o jornalista britânico Nick Kent. Sem mais sobre o lado A.
Hora de “God Only Knows”… Ahhhhhhh, “God Only Knows”!
O que dizer sobre “God Only Knows”? O que escrever sobre a música que faz Paul McCartney chorar sempre e cada vez que a ouve?
“’God Only Knows’ é uma das poucas canções que me reduz às lágrimas cada vez que a ouço. É realmente apenas uma canção de amor, mas é brilhante. Mostra a genialidade de Brian. Eu toquei com ele e receio dizer que, durante a passagem de som, simplesmente desmoronei-me. Foi demais para mim estar lá, a cantar esta canção ao lado de Brian”, disse Macca, numa entrevista de 2007.
E quem não chora com “God Only Knows”, Sir Paul?
O que dizer sobre uma canção que remete a Johann Sebastian Bach, a Frédéric Chopin ou a George Frideric Handel?
“Eu amo ‘God Only Knows’ e o seu arco histórico com o barroco, que volta lá atrás, para 1740 e Johann Sebastian Bach. Ela representa toda a tradição da música litúrgica que eu sinto ser uma parte espiritual da música de Brian. E o canto de Carl é praticamente o seu auge – tão bom quanto poderia ser”, analisou o compositor americano Jimmy Webb.
O que dizer da letra? O que dizer sobre a melodia? A grande verdade é que há pouco a dizer ou escrever sobre “God Only Knows”. Há, sim (e muito), que se ouvir e se emocionar. Sempre.
“God Only Knows” é a prova da existência do Próprio. Ou, como disse Bono Vox a respeito do arranjo, por altura da indução de Brian Wilson ao Music Hall of Fame britânico, em 2006, ao menos “é a prova, de facto, da existência dos anjos”. Só Deus sabe o que seríamos de nós sem ela…
Obrigado, Brian Wilson. Obrigado, Beach Boys.
Em outubro daquele 1966, eles lançariam outra pérola, que ficaria de fora de Pet Sounds: “Good Vibrations”. Mas essa história fica para outro dia… Porque todos os dias são históricos.
Em tempo: a foto que ilustra o post é a capa do single britânico, que tinha as canções invertidas (“God Only Knows” no lado A, “Wouldn’t It Be Nice” no B).
Apesar de ter saído em 1970, na verdade foi gravado no início de 1969. "Let It Be" foi mais uma ideia de McCartney, que sugeriu que a banda regressasse aos palcos. Os ensaios para os concertos seriam filmados e disso sairia um filme.
Na teoria tudo muito bom, mas na prática a coisa foi diferente. Após anos só a tocarem em estúdio, os quatro já não tinham o mesmo entrosamento de antes. As filmagens deveriam ser feitas nos horários estabelecidos pelo sindicato da indústria cinematográfica, o que significava que deveriam começar logo pela manhã.
A presença da nova namorada de John, Yoko Ono, também incomodava os outros e ficou logo claro que os tais concertos não iriam ocorrer. As discussões eram constantes e dessa vez foi George quem não aguentou mais e pediu para sair, cansado do feitio autoritário de McCartney (Harrison também reconsiderou rapidamente a sua decisão).
As coisas começaram a melhorar com a chegada do teclista Billy Preston e assim "Let It Be", "Across The Universe", "Get Back" e "Two of Us", foram tomando forma. Como eles precisavam de um clímax para o filme e os concertos tinham sido abortados, a decisão foi a de fazer uma apresentação surpresa no próprio telhado da Apple, no que seria a última aparição pública dos quatro.
O material resultante, que deveria sair num álbum chamado "Get Back", não se mostrou o bastante forte e o projecto foi encaixotado.
Em 1970, com o filme para sair e com a banda já praticamente extinta, era preciso dar um jeito naquelas músicas. Para isso, o produtor Phil Spector, que reinou no início dos anos 60, foi chamado. Phil fez o que seria esperado dele: encheu as fitas originais com orquestras e overdubs, traindo assim o espírito original de "rock básico" do projecto. A decisão enfureceu McCartney, que nunca o perdoou pelo arranjo sentimental criado para "The Long And Winding Road". Foi com esse disco que o mundo "velou" o fim dos Beatles e por que não dizer, dos anos 60 como um todo.
Em 2003 foi lançado "Let It Be Naked", com algo mais próximo à ideia original do disco. O resultado dividiu fãs e críticos. No fim de contas, o melhor é ficarmos com a versão que saiu em 1970, mesmo com as suas falhas mais do que evidentes.
Músicas, senhas, sinais e cravos vermelhos - nascia há 42 anos a democracia em Portugal, e com ela a esperança que tudo pudesse mudar.
Quarenta e dois anos passados, ficam na memória dos mais velhos a mudança de regime, na dos mais novos aquilo que os nossos pais, avós e professores nos contaram.
Sabemos as dificuldades que passavam, e hoje sentimos na pele outras que nos fazem sentir outros sentimentos de revolta, e eventualmente pensar em outra revolução.
Para mim as melhores lembranças fazem-se com notas musicais, por isso deixo alguns vídeos com músicas que nos fazem viajar até uma das maiores e melhores criações do Homem: a música.
Nos 42 anos do 25 de Abril de 1974, recordamos aqui algumas das músicas mais importantes da Revolução dos Cravos que estabeleceu a democracia em Portugal.
JOSÉ MÁRIO BRANCO - Engrenagem (1972)
Era 1972. Desterrado em Paris, José Mário Branco grava o seu segundo álbum: Margem de Certa Maneira. «Engrenagem» é uma das várias canções do disco com sabor amargo a exílio e ditadura. O que é interessante na canção é que a sua mensagem anti-rotina é expressa não só na letra mas também na própria ambiência repetitiva e desagradável da melodia e arranjos. Com este tipo de produção cuidada e inteligente, a música popular portuguesa entra num novo patamar.
Poucos serão os artistas cuja carreira (e vida) esteve sempre rodeada de uma aura misteriosa. Prince era uma estrela da música — uma das maiores —, mas nem por isso deixou de manter um lado obscuro e privado ao qual poucos tinham acesso. Do lado de fora assistiam-se às excentricidades: a troca do nome de palco por um símbolo que ninguém percebeu, também conhecido como símbolo do amor; as roupas; ou os penteados. No fundo, tudo o que um artista precisa para se tornar numa lenda. E nem todas as histórias têm de ser necessariamente verdade.
Esta quinta-feira, Prince Rogers Nelson morreu, aos 57 anos de idade, na sua casa de sempre — Paisley Park, em Chanhassen, no estado norte-americano do Minnesota. Seis dias antes, Prince já tinha pregado um susto aos fãs quando foi hospitalizado de urgência, devido a sintomas gripais. O final, porém, não seria um feliz. Felizes foram, sim, todos os que estiveram presentes no último espectáculo do artista, sem o saberem. Na passada semana, Prince subiu ao palco do Atlanta’s Fox Theatre.
“Ele começou o concerto com um pedido de desculpas. E depois deu uma performance incrível com direito a quatro encores. Notava-se uma ligeira rouquidão na sua voz, mas podia ser apenas um indicador da doença que o tinha afectado na semana anterior”, explicou Celeste Headlee à revista People.
De Prince fica, essencialmente, a música. Mas um músico faz-se também de rumores, excentricidades, fatos curiosos e episódios hilariantes. E esses não faltam a Prince: da detenção no aeroporto depois de roubar um megafone às supostas gravações dos gemidos de Kim Basinger.
As gravações
dos gemidos de Kim Basinger
Em 1989, chegava aos cinemas o filme “Batman”, de Tim Burton, abrilhantado por uma banda sonora criada por Prince. Pouco tempo depois, era também lançado o single “The Scandalous Sex Suite”, com uma colaboração invulgar: Kim Basinger, uma das protagonistas do filme, emprestava a voz a algumas das canções.
Os gemidos da atriz foram motivo de muitos rumores e especulações, na sua maioria sobre a suposta relação íntima que nasceu entre os dois. Houve até quem afirmasseque os gemidos incluídos no tema foram gravados pelo próprio durante o ato sexual.
Tinha um salão
de beleza só para si
Prince estava sempre impecavelmente vestido, maquilhado e sobretudo penteado. O seu cabelo era motivo de inveja, de homens e mulheres. Isso não acontecia por acaso. Quando em 1996, Prince comprou uma mansão em Marbella, Espanha, mandou construir um salão de beleza privado. Tão privado que nem a actual mulher, Mayte Garcia, podia usá-lo.
“Tinha de sair de casa sempre que queria arranjar o cabelo. Aquele salão de beleza não era para mim mas sim para o meu marido. O Prince precisava do seu espaço”,revelou Garcia em entrevista ao jornal inglês “The Daily Mail”, em 2006.
A música nem
sempre era o mais importante
Prince era louco por basquetebol e essa paixão não facilitava a vida ao artista. Quando um concerto em Montreal, no Canadá, coincidiu com a hora de um dos playoffs dos Chicago Bulls, o músico não abdicou de assistir à partida. Ordenou aos roadies que colocassem uma pequena televisão no canto do palco para que, durante os solos, pudesse esgueirar-se e assistir ao jogo. Quando isso não era possível, uma das assistentes escrevia o resultado num cartaz para que Prince estivesse sempre a par do que estava a acontecer.
Foi preso por
pregar partidas em aeroportos
Aparentemente, Prince era um grande fã dos programas de apanhados. Só isso explica os episódios revelados pelo ex-guitarrista do músico Dez Dickerson ao “New York Post”, passados em aeroportos: “Procurávamos uma cadeira de rodas vazia e ele sentava-se nela, de óculos de sol postos. Colocávamo-lo numa zona onde houvesse muita gente e lá ficava ele. Depois, tratava de atirar-se para o chão, enquanto as pessoas à volta dele o tentavam ajudar a voltar para a cadeira.”
As constantes partidas não acabaram bem para Prince. Antes de um vôo, o artista decidiu roubar um megafone. “Senhoras e senhores, alguém roubou uma peça de equipamento da companhia”, ouviu-se através do intercomunicador. Prince acabou por ser detido, um acontecimento que deu ao mundo uma das mais famosas fotos do músico.
“A brincadeira correu mal dessa vez mas acabou por ser muito engraçado porque ele acabou a noite a dar autógrafos na cadeia”, explicou Dickerson.
O tesouro
escondido de Prince
Entre 1978 e 2015 lançou 39 álbuns. Digamos que Prince era um artista muito produtivo. E se os rumores estão certos, aquilo que se conhece é apenas uma amostra do trabalho de uma vida. Passava horas a compôr e a maioria dessas composições nunca foram gravadas em estúdio. O que é feito delas? Tudo indica que estejam devidamente guardadas naquilo a que chamam “O Cofre”, o repositório de todo o material, escondido algures na mansão de Paisley Park.
A lenda dizia que “se Prince morresse hoje, haveria material para editar um disco por ano até ao século XXII”.
E se Prince recusava confirmar ou negar a existência de um tal cofre, muitos outros fizeram questão de revelar pormenores. Susan Rogers, antiga engenheira do som de Prince, foi uma delas: “Fui eu que criei o cofre. Juntei-me a ele quando estava a preparar a ‘Purple Rain’ e percebi que seria inteligente juntar todas as cassetes num único sítio. (…) É mesmo um cofre de um banco com uma porta grossa, instalado na cave de Paisley Park. Quando me vim embora, em 1987, estava quase cheio.”
O autor de "Purple Rain" e "Kiss" tinha 57 anos. Foi encontrado morto em casa, nos Estados Unidos.
Falar de Prince, eu diria que é falar, talvez, do maior multinstrumentista dos últimos 30 a 35 anos, um verdadeiro ícone pop, uma verdadeira referência da cultura pop do século XX, talvez só ao nível de Michael Jackson ou David Bowie, embora com uma capacidade que o colocava alguns bons metros à frente destes dois. E porquê? Porque o Prince tocava todos os instrumentos, que depois faziam parte dos álbuns e das canções que ele gravava, ou seja, ele escrevia cada nota para cada instrumento que usava em cada uma das suas canções. Dito isto, estamos a falar de um compositor, dançarino e guitarrista que gravou cerca de 40 álbuns, vendeu mais de 100 milhões de discos, foi actor, aliás, tem um dos papeis na banda sonora que compôs, o “Purple Rain”, que é uma das bandas sonoras mais vendidas, talvez a par de “Titanic” e a “Saturday Night Fever”. Eu diria que o Prince, tal como o Bowie, é um case study, é um homem que vai ser estudado agora ao longo dos anos, vai ser descoberto através dos variadíssimos álbuns, das variadíssimas participações, das variadíssimas colaborações. Deve ser também dos poucos músicos que tinha grandes noções de gestão, porque chegou a vice-administrador de uma grande editora mundial, mas eu acho que acima de tudo falar de Prince, é falar de, talvez, a par do Jimi Hendrix foi o que esteve mais perto daquele símbolo que faz parte da nossa imagem, de cantor Soul/Blues norte-americano, negro, guitarrista, que em palco é um verdadeiro Peter Pan como era o James Brown, embora o James Brown não tocasse. Eu acho que o Prince simboliza bem isso, e nos últimos 30 ou 40 anos não me lembro, à excepção como já disse do Jimi Hendrix, não me lembro de um artista tão multifacetado e com uma veia tão avassaladora, que se revelava depois nas canções e nos concertos que dava. Hoje, dia em que é anunciada a morte dele, há também uma notícia paralela, que diz que estava praticamente fechado um concerto-surpresa em Portugal, tal como o que aconteceu no Coliseu dos Recreios em Lisboa em 2013, que esgotou e que foi uma noite arrebatadora e maravilhosa. O Prince tinha este condão, de ser o génio que era, o artista que era, o músico da dimensão que era, e depois aparecia nas discotecas em Lisboa, no meio das pessoas a cantar e a tocar, e portanto, começa a ser difícil, não é? Foi David Bowie, hoje é o Prince, e enfim… É de facto um dia triste!
Freddie Mercury é, para muitos, o maior vocalista de sempre - tanto, que mesmo quem não seja fã dos Queen o consegue reconhecer. E, agora, um estudo científico da sua voz parece dar-lhes razão.
Um grupo de investigadores austríacos, checos e suecos passou os últimos anos a analisar a voz de Freddie Mercury, tendo reunido as suas descobertas e conclusões num trabalho entretanto publicado no Logopedics Phoniatrics Vocology, jornal oficial da British Voice Association.
Uma das suas descobertas foi a de que Mercury, apesar de ser reconhecido como tenor, era provavelmente barítono, tendo para tal analisado seis entrevistas do músico e descoberto uma frequência média de fala de 117.3 Hz.
Não só isso, como ainda contrataram um vocalista profissional, Daniel Zangger-Borch, para imitar a voz de Mercury, de forma a poder filmar a sua laringe e observar exactamente como o vocalista dos Queen criava a sua voz.
Este trabalho de investigação só confirma o que todos já sabiamos: Freddie Mercury possuía uma voz única.
A autobiografia de Eric Clapton é essencial para qualquer admirador do guitarrista e não só. Ao longo da obra, Clapton explora todas as facetas da sua vida, tal como sempre explorou o braço da guitarra. A amizade, os problemas pessoais, o amor, a espiritualidade, o amadurecimento e principalmente a música, encontram lugar naquele que foi considerado o livro de memórias mais aguardado durante décadas.
A obra relata o triunfo da música sobre a adversidade. O próximo passo será, sem dúvida, o filme. Mas a vida de Eric já daria um filme há 30 anos. Depois de ter influenciado várias gerações de guitarristas e de ter transformado a música, Clapton descreve as suas experiências em prosa. Se a compararmos com a biografia de Ray Coleman, notamos que os factos coincidem. A circunstância de Clapton ter mantido um diário desde sempre, também o ajudou a redigir este texto. Aliás, disponibilizara-o a Coleman.
“A minha vida divide-se em três fases”, revela Eric Clapton. “A fase do meio foi a mais delicada e, infelizmente, é aquela que mais interessa às pessoas… envolver-me com drogas, mulheres, o lado sombrio e perder-me. E, depois, o regresso a mim mesmo. E a música refletiu isso.”
As histórias sobre alguém que desce aos infernos e regressa são muito apreciadas. Ao contrário de outros nomes da música, que adquiriram estatuto de lenda – tal como os seus amigos Jimi Hendrix e Stevie Ray Vaughan –, Eric Clapton sobreviveu para contar.
“Desde pequeno que aprecio os diferentes aspetos da literatura inglesa, e a sintaxe e a gramática sempre me fascinaram. As únicas disciplinas em que era bom, na escola, excetuando a arte, foram inglês e literatura inglesa, embora isso não me qualifique necessariamente para escrever isto e achar que interessará a outras pessoas.”
Ninguém se consegue esconder atrás das palavras, e Clapton é disso exemplo. Relata o modo como cresceu e ficou fascinado pela música desde jovem. “As pessoas dizem sempre que se lembram exatamente onde estavam no dia em que Kennedy foi assassinado. Eu não me recordo, mas recordo-me de entrar no recreio da escola no dia em que Buddy Holly morreu e da emoção que pairava no ambiente. Aquele lugar parecia um cemitério, ninguém conseguia falar, estávamos todos em choque. De todos os heróis musicais da época, ele era o mais acessível e autêntico. Não era espalhafatoso, mas sim, um guitarrista a sério e, para cúmulo, usava óculos. Era como se fosse um de nós. Foi espantoso o efeito que a sua morte teve. Alguns dizem que a música morreu com ele. Para mim, pareceu abrir-se.”
UMA QUESTÃO DE METABOLISMO
Eric moeu a paciência ao avô para lhe comprar uma guitarra, mas não foi um início auspicioso. “Tratou-se claramente de um caso de pôr o carro à frente dos bois, já que eu nem sabia afinar uma guitarra e muito menos tocá-la.”
“Não havia ninguém que me ensinasse, por isso, tentei aprender sozinho, o que não foi fácil. Para começar, não pensava que fosse tão grande, era quase do meu tamanho. Quando pegava nela, os meus dedos nem sequer conseguiam rodear o braço ou pressionar as cordas.”
“Afigurava-se uma tarefa impossível e senti-me vencido. Ao mesmo tempo, fiquei incrivelmente empolgado. A guitarra era muito brilhante e, de certa maneira, virginal. Era como um artefacto doutro universo, tão fascinante e, quando tentava tocar, sentia-me mesmo a entrar no território dos crescidos.” As coisas pioraram quando partiu uma corda. “Como não tinha outras, tive de aprender a tocar só com cinco, e assim fiz durante bastante tempo…”
Abandonado pelos pais e acarinhado pelos avós, Eric tornou-se um fanático por música, mas os blues foram desde logo uma paixão. “Havia algo de primitivamente apaziguador naquela música; afetou-me o sistema nervoso.” Começou a praticar com afinco a estrutura básica dos blues: “Trabalhei naquilo até sentir que fazia parte do meu metabolismo.” Em Charing Cross Road e Denmark Street, havia diversas lojas de instrumentos, e Clapton confessa que, para ele, eram como lojas de doces:
“Ficava horas a olhar para as guitarras elétricas, especialmente à noite, quando as montras se mantinham iluminadas.”
CLAPTON IS GOD
Em breve, começou a tocar com os Yardbirds, com os John Mayall’s Bluesbreakers e, a seguir, fundou os Cream. Com pouco mais de 20 anos, era já famoso e a sua fluidez espantava as plateias. Era o protótipo do guitar hero, um virtuoso enigmático, originando a que o grafitti “Clapton is God” surgisse nas paredes londrinas. Mas, ao longo do livro, nota-se alguma falta de habilidade em lidar com as atenções. O que marcou realmente Eric foram pormenores como a ocasião em que Aretha Franklin gravava o álbum Lady Soulem Nova Iorque: “Tiraram todos os guitarristas do estúdio e puseram-me lá. Fiquei muito nervoso porque não sabia ler música, e eles tocavam por pauta. Aretha entrou e cantou «Be As Good To Me As I Am To You» e toquei. Tenho de dizer que participar nesse álbum, com todos aquele músicos incríveis, ainda é um dos pontos altos da minha vida.”
Durante o período dos Cream, conheceu Pattie Boyd, mulher de George Harrison e ficou admirado com uma criatura “cuja beleza parecia vir do interior”. A paixão arrasadora e a inacessibilidade de Boyd precipitaram uma fase de criatividade extraordinária, seguida de um período de reclusão, em que Eric se fechou na sua mansão, Hurtwood Edge, consumindo heroína. Como Clapton tinha pânico às agulhas, não se injetava, pelo que gastou fortunas no produto, inalando-o. Gastava, por semana, cerca de 10 mil euros em heroína (pelos câmbios atuais).
A sua natureza sensível era presa fácil do conforto da droga, e foram vários os amigos que tentaram resgatá-lo, mas o guitarrista só concordou em reabilitar-se dois anos depois. Durante esse período, encarou alguns dos seus dilemas. “A religião interessava-me, mas sempre resisti a doutrinas, e a espiritualidade que experimentara até então, na minha vida, fora abstrata e desalinhada de qualquer religião reconhecida. Para mim, o veículo mais fiável para a espiritualidade sempre provou ser a música. Não pode ser manipulada, politizada e, quando é, isso torna-se imediatamente óbvio.”
Em 1975, participou na ópera-rock Tommy dos The Who, interpretando um pregador de uma curiosa igreja que endeusa Marilyn Monroe, cantando «Eyesight to the Blind», um dos melhores momentos do filme.
Clapton era mais do que uma lenda, tornara-se numa figura mitológica. As suas plateias, agora, eram estádios e já não precisava de pertencer a uma banda. Milhares de pessoas saudavam o tímido guitarrista com aplausos ensurdecedores, como se estivessem, ironicamente, numa estranha igreja.
Yvonne Elliman e Eric numa das esgotantes digressões nos anos 70.
O fenómeno sustentou-se ao longo dos anos. Dominou os concertos do Prince’s Trust, esgotou concertos a fio no Royal Albert Hall, com orquestra e sem ela e, em 1993, deixou o Madison Square Garden a seus pés, ofuscando todos os participantes na homenagem a Bob Dylan.
A FALÁCIA
Durante a fase Derek and the Dominos.
Apesar de ter dedicado a vida à música e de ser autor de muito do trabalho de guitarra mais espantoso de sempre, E.C. também assinou vários discos medianos como No Reason To Cry, August ou Backless; o período dos anos 80 é efémero, bem como o anticlímax que foi o seu álbum homónimo de estreia a solo. O grande segredo de ‘Slowhand’ foi ter tido sempre uma aproximação respeitosa à sua arte. Contudo, nos anos 70, chegou a dar um concerto inteiro estendido no palco. “Ninguém achou nada estranho. Provavelmente o público também estava bêbedo”, admite.
Se a estrada do excesso leva realmente ao palácio da sabedoria, Clapton formou-se com mérito. Durante a década de 70 e grande parte da década de 80, quase foi destruído por outro vício que lhe minou a saúde mental e física. Por pouco não se matou num acidente de automóvel, as suas atuações tornaram-se cada vez piores. Passou noites com uma garrafa de vodka, um grama de cocaína e uma espingarda em cima da mesa, a contemplar o suicídio.
“Costuma dizer-se ‘beber para esquecer’”, reflecte Eric, “mas a grande falácia do álcool é essa. Só amplia os problemas. Eu bebia para banir um problema e, quando ele não desaparecia, bebia mais, pelo que a finalidade do meu hábito era uma loucura”.
Cortou radicalmente e, durante um jantar, começou a ver a sala andar à roda. “Acordei na ambulância e vi Pattie assustadíssima a olhar para mim. No hospital, disseram-me que se tratara de uma crise motivada por abstinência súbita.”
O problema de Clapton mergulhou-o no desespero. No início dos anos 80, concordou em reabilitar-se, viria a ter uma recaída e, durante a segunda desintoxicação, na clínica de Hazelden, apercebeu-se subitamente da gravidade do seu estado. “De repente, as pernas cederam, como se por vontade própria. Na privacidade do meu quarto, pedi ajuda. Não sei com quem pensava que estava a falar. Só sabia que chegara ao fim da linha. Já não podia lutar com mais nada.” Dias depois, apercebeu-se de uma transformação. “Um ateu provavelmente diria que foi uma mudança de atitude e até é verdade, mas foi mais do que isso. Eu encontrara um lugar onde pedir ajuda, sempre soube que ele estava lá, mas nunca quis ou precisei de acreditar nele.”
Começou a rezar: “Todas as manhãs, pedindo ajuda, e à noite, para expressar gratidão pela minha vida e, acima de tudo, pela minha sobriedade. Nunca tive problemas com a religião e as matérias espirituais sempre me suscitaram grande curiosidade, mas a minha busca afastou-me da igreja e das congregações, à medida que enveredava por uma jornada interior. Antes de a minha recuperação ter começado, encontrei o meu deus na música e nas artes, com escritores como Herman Hesse e Khalin Gibran, e músicos como Muddy Waters, Howlin’ Wolf e Little Walter. De algum modo, o meu deus sempre esteve comigo, mas agora aprendi a falar com ele.” Em 1987, após inúmeros retrocessos, Clapton parou definitivamente de beber. Outro grande motivo foi a paternidade.
Em finais dos anos 60, aos 20 e poucos, Eric já tocava com um dos seus heróis: B. B. King.
“O” MOMENTO
Quando começou a escrever sobre a morte do seu filho, os editores pediram mais. Clapton respondeu: “Apenas posso escrever sobre como é difícil regressar a esses tempos. Só escrever sobre isso me aterroriza.” Eric tinha uma filha, Ruth, de um relacionamento anterior, que vivia com a mãe e não se dava com o pai. Quando Conor nasceu, Clapton estava ansioso por testemunhar o momento: “Tinha a sensação incrível de que ia ser a primeira coisa importante que me acontecera. Até então, a minha vida parecera uma série de episódios com pouquíssimo significado. Só me pareceu real quando me desafiava a mim mesmo musicalmente. Tudo o resto, o álcool, as digressões, até a minha vida com Pattie, tinha um ar de artificialidade. Quando o bebé finalmente nasceu, deram-mo para pegar nele. Fiquei extasiado, senti-me tão orgulhoso… embora não fizesse ideia de como se pegava num bebé.”
Clapton analisa a relação que tinha com a criança, a pessoa mais importante da sua vida, “um ser angelical”, adorado por todos, desde o manager aos amigos. Em março de 1991, o telefone tocou e a mãe gritou-lhe que Conor estava morto.
“Lembro-me de percorrer Park Avenue e de pensar, ‘está tudo bem’… como se alguém se pudesse ter enganado num assunto destes.” Quando passou pelo prédio onde o acidente ocorrera, viu uma fila de polícias e paramédicos e caminhou em frente, sem coragem para enfrentar a situação. Arranjou forças para recuar, identificou-se e informaram-no de que o filho caíra do 53º andar. Clapton, chocado e fora de si, tornou-se rapidamente “numa daquelas pessoas que apoiam outras em alturas de crise”. Teve posteriormente de identificar o cadáver. “Fui mais tarde vê-lo na casa mortuária, despedir-me dele e pedir-lhe desculpa por não ter sido um pai melhor.”
Completamente devastado, passou por uma fase crítica, em que os amigos receavam deixá-lo sozinho, temendo o suicídio. Mudou-se para Londres e ficou admirado com as cartas que recebeu, dos Kennedy ao Príncipe Carlos. Mas uma das primeiras que abriu era de Keith Richards. “Dizia apenas, ‘se puder fazer alguma coisa, diz-me’. Ficar-lhe-ei para sempre grato.”
Keith Richards foi um dos primeiros a apoiar Clapton.
“Não nego que houve um momento em que perdi a fé, e o que me salvou foi o amor e a compreensão incondicionais dos meus amigos e dos meus colegas do programa [de reabilitação]. Eu ia a uma reunião e as pessoas juntavam-se tranquilamente à minha volta, fazendo-me companhia, ofereciam-me um café e deixavam-me falar sobre o sucedido.”
Num destes encontros, Clapton contou a sua experiência em Hazelden. No final, uma mulher abordou-o: “Ela disse-me, ‘acabou de pôr fim à minha última desculpa para beber’. Perguntei-lhe o queria dizer e ela respondeu: ‘Tive sempre um pretexto para beber; se algo acontecesse aos meus filhos, isso justificava que eu me embebedasse. Acabou de me mostrar que não é assim.’ Percebi subitamente que havia maneira de tornar esta terrível tragédia em algo positivo”, explica Eric.
“Cheguei a um ponto em que pude dizer, ‘se consigo suportar isto e manter-me sóbrio, qualquer pessoa pode’. Foi quando percebi que não havia melhor forma de honrar a memória do meu filho.”
REFORMA, SÓ COM A MORTE
Clapton e Melia.
Clapton encontrou a felicidade junto de Melia. “Aos 54 anos, provavelmente fiz a primeira escolha saudável de uma companheira em toda a vida.” Eric ficou preocupado com a diferença de idades, já que Melia tinha 20 e poucos anos, mas conseguiu finalmente estabilizar a sua vida com ela. Explica que a sua última digressão foi mesmo a última, pelo menos em grande escala. É com satisfação que retrata o modo como as suas filhas, Julie, Ella e Sophie, lutam entre si para se sentarem ao lado do pai à mesa.
O álbum Back Home (2005), é um conjunto de canções sobre a felicidade, “tarefa nada fácil”, comenta. O disco não é dos seus melhores, mas podemos ver que a chama de Clapton ainda arde no DVD que retrata a reunião dos Cream em 2005. Toca tão bem como sempre, perante os olhares admiradores de Sean Penn, Brian May ou Christiane Amanpour.
Continua a comparecer nas reuniões do Alcoólicos Anónimos e refere que mantém o contacto com muitas pessoas em reabilitação, tantas quanto pode.
“Manter-me sóbrio e ajudar outros a manter a sobriedade será sempre a máxima mais importante da minha vida.”
Com esse objetivo, fundou uma clínica de reabilitação, a “Crossroads” e vendeu as guitarras para suportar os custos. No dia antes do leilão, despediu-se delas. Não foi fácil, já que eram companheiras de muitos anos de digressões. As vendas bateram recordes, com a carismática “Blackie” a ser comprada por 960 mil dólares. A sua “Cherry Red” arrecadou 847 mil dólares, a soma mais alta alguma vez paga por uma guitarra Gibson. Ao todo, Clapton vendeu 88 guitarras, angariando sete milhões, 438.624 dólares para a “Crossroads”.
Já disse que se ia retirar várias vezes, mas conclui que, ao estilo de todos os bluesmen que admira, a reforma provavelmente só virá com a morte. “Tenho constantemente jurado que vou desistir da estrada e ficar em casa, e talvez um dia seja forçado a isso, por uma razão ou outra. Por agora, vou deixar a porta aberta, e talvez isso torne mais fácil para mim o facto de ficar do lado de dentro, uma espécie de psicologia invertida, quem sabe? Só sei que, por enquanto, não quero ir a lado nenhum, e isso não é mau para quem passava a vida a fugir.”
INGENUIDADE OU AUTENTICIDADE?
Quando os Yardbirds enveredaram pelo comercialismo com o single «For Your Love», Clapton abandonou-os, desgostado. Quando os Bluesbreakers já não correspondiam à sua ânsia criativa, deixou-os para integrar os Cream. Ao formar os Derek and the Dominos, não fez qualquer publicidade, achando que a música e uma digressão discreta garantiriam o sucesso. A editora enviou press-releases para todo o lado, lembrando que “Derek” era “Eric”, mas não evitou a catástrofe comercial. Até a bíblia do rock, a Rolling Stone, dizimou Layla, mas o álbum tornou-se num marco.
Com humildade, Eric Clapton considera que o grande sucesso de Unplugged, em 1992, se deveu, não à qualidade musical, mas ao facto de muitas pessoas lhe quererem dar uma palavra de apoio na fase difícil, após a perda que sofrera. “Como não tinham outra forma de o fazer, compraram o disco.” Foi o álbum que lhe deu menos trabalho a gravar e a preparar, e achou que não seria grande sucesso.
“Era só eu a tocar umas canções de que sempre gostei.” Foi o maior sucesso da sua carreira, mas não explorou o filão da música acústica, contrariando o conselho do manager e lançando From the Cradle, autêntico tributo de amor aos blues.
Em finais da década de 90, Eric gravou um álbum com Simon Climie, sem publicidade, achando que a qualidade da música bastaria. Foi um fracasso, até que se descobriu que o nome Clapton estava associado ao projeto. A imprensa musical mudou logo de opinião. “De um momento para o outro, já era uma bela coisa”, desabafa o guitarrista, enfadado, admitindo a sua “ingenuidade” na matéria.
Mas não chamaríamos ingénuo a quem escreve assim: “A cena musical, tal como a vejo hoje, é pouco diferente da época em que cresci. As percentagens são mais ou menos as mesmas – 95 por cento uma treta, cinco por cento de pureza. No entanto, os sistemas de marketing e distribuição atravessam uma grande mudança e, no final desta década, acho improvável que qualquer uma das companhias discográficas ainda exista. Com todo o respeito pelos envolvidos, a perda não seria grande. A música encontrará sempre o caminho até nós, com ou sem o comércio, a política, a religião ou qualquer outra merda que lhe prendam. A música sobrevive a tudo e, como Deus, está sempre presente. Não precisa de ajuda e não sofre qualquer bloqueio. Sempre me encontrou e, com a bênção e a permissão de Deus, sempre encontrará.”
Eric Patrick Clapton nasceu há 71 anos, em Ripley, no Surrey, filho de Patricia Clapton, de 16 anos, e Edward Fryer, de 24 anos, um soldado canadiano mobilizado para a Grã-Bretanha durante a II Guerra Mundial. Antes de Eric nascer, o pai regressou até junto da esposa, no Canadá. Por culpa dos preconceitos da época, Eric foi criado a pensar que a mãe era sua irmã e que os avós eram seus pais. Quando descobriu a realidade, aos nove anos, ficou transtornado.
O jovem tornou-se num educado e tranquilo estudante de arte. Mas, aos 16 anos, foi expulso da escola. Motivo? A guitarra. Passava horas sozinho no quarto, a estudar os velhos discos de blues de Robert Johnson num gira-discos, reduzindo as rotações para aprender as notas. Era um esforço autodidata e solitário, mas Eric sentia-se diferente, devido ao seu passado familiar. A sua natureza introspetiva condizia na perfeição com os blues.
Trabalhou na construção civil e começou a fazer viagens a Londres, até que, em 1963, integrou os Yardbirds, banda onde se tornou conhecido como guitarrista excecional e inovador. Em abril de 65, com apenas 20 anos, junta-se aos John Mayall’s Bluesbreakers. O álbum que gravou com o grupo, além dos concertos, fizeram com que o grafitti “Clapton is God” surgisse na estação de Metro de Islington, originando uma famosa fotografia.
As atenções não interferiram na sua personalidade reservada e simples. No final dos anos 60, juntou-se a Ginger Baker e Jack Bruce, formando o supertrio Cream. Seguiram-se os Blind Faith, em que uniu forças com Ginger Baker e Stevie Winwood numa tentativa fracassada de formar um supergrupo.
As pressões para que seguisse uma carreira a solo eram inevitáveis, e Eric edita o seu primeiro álbum homónimo em agosto de 70. Embora algumas faixas, como «After Midnight», se tenham tornado parte do seu reportório, o disco denotava alguma insegurança. Clapton não se via como cantor e a sua timidez deu origem ao passo seguinte: O veterano de 25 anos formou os Derek and the Dominos.
Das poucas imagens que existem do grupo, no programa de Johnny Cash, em 1971. Eric com a guitarra “Brownie”:
“Derek” era Eric: “Quisemos formar uma banda, mas eu não achava que tivesse conquistado suficientemente o respeito do público para ser o cantor. Teria estragado tudo se tivesse dado o meu nome ao projeto. Deste modo, liderei as coisas de modo subtil, usando outro nome.” Na sua mansão do Surrey, Clapton ensaiou com Jim Gordon, Carl Radle e Bobby Whitlock.
O quarteto mostrou os primeiros resultados ao participar no álbum All Things Must Pass, do ex-Beatle George Harrison, o melhor amigo de Clapton. Surge então um dilema. Esta fase coincidiu com a paixão da vida de Clapton; a mulher de George Harrison, justamente: Pattie Boyd.
Digressão de Layla.
Digressão de Layla. Nesta altura, Clapton tocava como um homem possuído.
A paixão não correspondida de Boyd, a morte do amigo Jimi Hendrix e a perda do avô lançaram o guitarrista num inferno pessoal. Clapton conhecera Hendrix em 1966. Os músicos, embora fossem competidores no título de “melhor guitarrista do mundo”, sentiam uma enorme admiração mútua.
Cada vez mais deprimido, Clapton mergulhou na música como único escape, concebendo uma obra-prima: Layla and Other Assorted Love Songs. Na gravação, participou Duane Allman dos Allman Brothers, guitarrista fora de série, que deu um impulso inimaginável a Clapton. As gravações ficaram marcadas pelo abuso de várias substâncias. Eric, muitos anos mais tarde, recapitulou que os estupefacientes não ajudam nenhum guitarrista. Revela que isso só lhe aconteceu na gravação do lendário «Layla», tema inspirado pela obra do poeta persa Nizami:
A História de Layla e Majnun, o relato de um homem que se apaixona por uma princesa comprometida, acabando por ser considerado louco, sendo proscrito para sempre. Os paralelismos eram evidentes e todos conheciam o dilema de Eric/Derek.
Além do grito de desespero que é «Layla», do álbum consta uma canção ainda hoje considerada superior nas votações das revistas de guitarra: «Have You Ever Loved a Woman?», na qual eleva os blues a um nível operático, dialogando com a guitarra slide de Allman, e cantando como um possesso. Esta faixa bastaria para lhe garantir um lugar na História. Eric gravou ainda uma versão de «Little Wing», de Hendrix, duas semanas antes da morte do guitarrista. Duane Allman também faleceu, algum tempo depois, num acidente de moto.
Na digressão de Layla (que viria a ser retratada em In Concert, dos Dominos, em 1973) Clapton toca como um demónio, um homem torturado. Os seus solos intensos prolongam-se, com o guitarrista a querer furiosamente derrubar as fronteiras da Fender Stratocaster. O seu drama era conhecido, o que ajudou a criar uma espécie de aura à sua volta. O público sabia quem era “Derek”.
ATRÁS DA MÁSCARA
A nível pessoal, Clapton estava à beira do abismo. Cada vez mais dominado pela heroína – problema que afectava todo o grupo –, não conseguiu dar sequência ao álbum. O insucesso do disco e os problemas pessoais devastaram-no de tal forma que se fechou três anos em casa a consumir heroína e a vender guitarras para sustentar o vício, no auge do sucesso.
O conto de fadas torna-se realidade: Clapton e Pattie Boyd. “Ele fez duas coisas que admiro imenso”, disse o amigo Pete Townshend, “livrou-se do vício e conquistou a mulher que amava”.
Em janeiro de 1973, o amigo Pete Townshend, dos The Who, foi um dos que mais tentou resgatar Clapton, ajudando a organizar o concerto no Rainbow, em Londres. Esta tentativa não produziu efeitos imediatos, mas Clapton acabou por se desintoxicar, regressando com 461 Ocean Boulevard, em 1974, a sua verdadeira estreia a solo. “Livrei-me da droga, mas cometi um erro clássico: Comecei a beber”, refletiu o guitarrista, anos mais tarde. Casou com Pattie Boyd, protagonizando um autêntico conto de fadas, mas, durante toda a década de 70, o alcoolismo interferiu no seu trabalho, dando origem a álbuns de qualidade desigual. As intermináveis e triunfais digressões dos anos 70 foram realizadas no meio de uma névoa alcoólica que ameaçava destruir o talento e a vida de Clapton.
«Wonderful Tonight» foi outra das canções dedicadas a Boyd. “Não importa se foi bem gravada ou bem tocada. Não interessa, porque a canção é boa”, diz Eric. O tema integra o álbum Slowhand, de 1977, um disco soberbo.
O nome é uma das alcunhas de Clapton, já que, quando partia uma corda durante os concertos dos Yardbirds, mudava-a ao som das palmas ritmadas do público, daí “mãos lentas”. Uma outra explicação é a ironia do termo, tendo em conta a rapidez de Clapton nas seis cordas.
Em dezembro de 1979, Eric passou por Tóquio, autorizado a atuar no famoso Budokan – sala japonesa sagrada e reservada à prática de artes marciais. Clapton adora o país, que também o adora a ele, diga-se. O concerto foi gravado e editado com o nome Just One Night. “Os públicos são invariavelmente generosos”, escreveu Clapton nas notas do álbum, declarando-se uma espécie de ‘freak’ naquela “sociedade tão rígida, de que tanto se orgulham. Mas tudo corre sempre com doçura”.
Neste álbum ao vivo, é registada a versão de «Blues Power», uma tour de force, com Eric a usar o pedal de wha wha, no qual é exímio. Deitou a sala abaixo com um solo fulgurante na fiel “Blackie”, que com ele partilha a capa do disco. Os registos ao vivo de Eric são sempre marcados por uma grande simpatia do guitarrista. Agradece com a cabeça, face aos aplausos do público, após um solo, e termina com um “God bless you”, frase com que revela a sua faceta espiritual.
Durante os anos 70, Eric devolveu ainda a Bob Marley o lugar merecido com a versão de «I Shot the Sheriff», gravou uma versão de «Knocking on Heaven’s Door», com sabor a reggae, eclipsando a interpretação de Bob Dylan. As suas versões ofuscavam os temas originais, o que ficou explícito nas experiências com a música country. Interpretou (e popularizou) várias músicas de JJ Cale, como «Cocaine», até que com ele gravou um muito esperado álbum de duetos, The Road to Escondido (2006).
No início dos anos 80, Clapton é internado de urgência com uma úlcera do tamanho de uma bola de golfe, prestes a rebentar. Segundo os médicos, não morreu por uma questão de horas. Os tabloides apregoaram, “Clapton perto da morte”. Mas o guitarrista não parou de beber.
SANGUE, SUOR E LÁGRIMAS
Em 1983, após uma pausa inadiável, edita Money and Cigarettes, um regresso à boa forma. Pessoalmente, sentia-se desorientado sem o álcool, e a relação com Pattie Boyd desagregava-se. Boyd tornara-se alcoólica e acabam por se separar. A esposa não podia ter filhos, o que torna ainda mais dramático o que sucederia futuramente a Clapton.
Eric colaborou com Roger Waters em The Pros and Cons of Hitch-Hiking, em 1984. Waters fez uma manobra sarcástica, na altura em que se desentendeu com o colega dos Pink Floyd, David Gilmour. Por isso, foi buscar o “maior guitarrista do mundo”, para enervar o plácido Gilmour. Apesar das intenções maquiavélicas de Waters, Clapton aquiesceu e fez o que pôde por salvar o descalabro… Não gostou especialmente da digressão, das limusinas e dos jantares finos de Waters, horrorizando o colega quando pediu um hambúrguer e batatas fritas, farto de esperar interminavelmente por um prato requintado.
Os anos 80 ficaram marcados pela sua tentativa de lidar com o comercialismo da década, deixando que discos seus fossem produzidos por Phil Collins. Participou no Live Aid, uma atuação fulgurante, e já na época se disse que foi uma forma de dar a conhecer a sua música a uma nova geração. Em agosto de 86, nasce o seu filho, Conor, que inspirou o nome do álbum editado nesse ano, August.
Em finais de 80, “Slowhand” reincidiu no alcoolismo. Em dezembro de 87, estava em tratamento, no Minnesota, quando surgiu na televisão, num filme publicitário da cerveja Michelob. “Estava numa sala cheia de alcoólicos em reabilitação, eu incluído. Todos me perguntaram se era eu. E eu respondi ‘sim’, o que havia de dizer?”
Na digressão de Roger Waters.
Depois de ultrapassada esta nova barreira, gravou Journeyman. Clapton, que se vê como um viajante, sentiu-se algo culpado por alguns dos rumos que a sua música tomou.
“Penso que me vendi há muito tempo. Fiz uma espécie de acordo comigo mesmo, tentei seguir caminho, agradar às pessoas, para tornar a vida fácil.”
Eric Clapton e Conor.
Durante os anos 90, Clapton ficou conhecido pelas suas temporadas de concertos esgotados na prestigiada sala londrina Royal Albert Hall, celebrizada pelos espetáculos de música clássica. A década ficou marcada pelo divórcio de Pattie e a separação da mãe do seu filho, a italiana Lori Del Santo. A morte do amigo Stevie Ray Vaughan, num desastre de helicóptero, deixou-o destroçado. Clapton ia partilhar o helicóptero com Vaughan, depois de ter atuado com ele nessa noite, mas mudou de ideias, preferindo viajar no dia seguinte. Em 1992, o guitarrista estava em Nova Iorque para visitar Conor, quando este caiu de um arranha-céus. Clapton é internado em estado de choque.
Muitos especularam que se refugiaria novamente nos antigos vícios, face a tantas tragédias. Mas o guitarrista permaneceu apenas viciado em jogos da Nintendo. Partiu para Antígua, nas Caraíbas, levando apenas uma guitarra clássica. Foi lá que compôs «Tears in Heaven», «Help me Up» e «The Circus Left Town», baseado no ultimo dia que passou com o filho, e em que ambos visitaram um circo: “O que vais ver e o que vais ouvir, terão de durar para o resto da tua vida.” A canção foi ofuscada pelo enorme sucesso de «Tears in Heaven».
O convite para compor a banda sonora de Rush – Uma Viagem ao Inferno, em 1992, deu-lhe a oportunidade para exprimir o que sentia.
“As pessoas que seguem a minha carreira e que gostam da minha música, ficariam um pouco surpreendidas se eu não escrevesse sobre a morte do meu filho”, explica Clapton.
Quando recebeu uma mão-cheia de Grammies, disse, baixando o olhar: “Agradeço ao meu filho pelo amor que me deu e pela canção que me deu.” O momento poderia adquirir contornos de um dramatismo previsível, mas a assistência aplaudiu em pé, durante vários minutos, a canção, o prémio, a carreira de Clapton, mas, sobretudo, a dignidade com que enfrentou os seus demónios.
RENASCIMENTO
Em 1992, edita Unplugged, álbum notável que o deu a conhecer a mais uma geração. Dois anos depois, regressa aos blues com From the Cradle, no qual toca melhor do que nunca. O seu virtuosismo recorda a lenda: Os músicos de blues faziam um pacto com o diabo numa encruzilhada, vendendo a alma em troca do talento.
Em 1998, lança Pilgrim, que inclui o tema «My Father’s Eyes», onde o círculo se fecha. Por esta altura, as declarações do guitarrista já adquiriam um tom merecidamente filosófico.
“Nunca conheci o meu pai”, disse Clapton. “Penso que morreu há alguns anos. Mas, o mais próximo que estive de ver os olhos do meu pai, foi ao olhar para os olhos do meu filho.”
No final do álbum, surge um tema interessante, «Inside of Me», em que a filha, Ruth, lê um excerto de O Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Clapton complementa: “Ao arranhar a superfície, tudo parece igual; um mundo cheio de cólera, onde ninguém é culpado. Mas, para quem me posso voltar? Quem tem a chave? E a resposta? Acho que está dentro de mim.”
Na digressão de From the Cradle.
Mark Knopfler, com quem colaborou por diversas vezes, aponta-lhe outro talento: “O Eric é um dos meus cantores favoritos.” Durante o concerto dedicado a Nelson Mandela, em 1988, Knopfler anuncia a substituição de um guitarrista dos Dire Straits, por ter tido duas filhas: “Teve duas meninas, deste tamanho”, explica, elevando a mão à altura do peito. “Por isso, tivemos de arranjar um substituto. Nunca tocou em Wembley… mas foi o melhor que se arranjou. Mas já tem alguma experiência…” No final de «Wonderful Tonight», Knopfler diz apenas: “E.C!”
Os dois guitarristas, com estilos contrastantes, colaboraram diversas vezes. Quando Knopfler entrou em cena, em 1978, Clapton ficou “assustado” com o competidor. Um dos muitos guitarristas com quem tocou, espelha a opinião de toda a “classe”:
“Mais do que um grande guitarrista, quando convivíamos com ele, tínhamos a sensação de que era boa pessoa.”
Com a fiel Blackie.
Foi o “erro favorito” de Sheryl Crow. Em 2004, editou mais um álbum de blues, desta vez totalmente dedicado à sua grande influência: Robert Johnson. No ano seguinte, conseguiu que os antagónicos Jack Bruce e Ginger Baker fizessem as pazes, e o trio revitalizou os Cream. A idade dos músicos e o teor da iniciativa faziam temer que a reunião pouco acrescentasse ao legado do grupo. Mas os três músicos provaram que a química ainda existia, tornando o evento excecional. Felizmente, foi registado num ótimo DVD, ao vivo no Albert Hall.
10 anos antes deste concerto, as capas de revistas como a Guitar Player ou a Guitar World proclamavam, “o velho ‘Slowhand’ continua…” Clapton lançou a sua esperada autobiografia, mas Pattie Boyd antecipou-se com o livro Wonderful Tonight: George Harrison, Eric Clapton, and Me.
Em anos recentes, Clapton tem tido sossego. Foi pai de três filhas. “Sim, tive outros filhos, mas é claro que nenhum deles irá substituir Conor.” Anunciou que se ia retirar do mundo musical. Com a humildade do costume, comentou, numa entrevista:
“As mortes que marcaram a minha vida, fizeram-me perceber uma coisa: Se temos mais um dia, é uma bênção.”
A FIEL «BLACKIE»
Clapton leiloa Blackie, a sua guitarra preferida. Motivo? Angariar fundos para quem sofreu o mesmo problema que ele.
A guitarra mais famosa de sempre é questionavelmente a “Blackie”, de Eric, embora os fãs de B.B. King possam dizer que “Lucille” é digna do epíteto. No entanto, embora “Lucille” guarde as suas histórias, a Fender Stratocaster preta e branca de Clapton possui um carisma invulgar. No início dos anos 70, Eric comprou diversas Stratocasters a um preço barato, nos Estados Unidos, uma vez que, na época, o modelo não era muito popular. As Gibsons estavam na berra, em parte devido ao próprio Clapton.
O guitarrista ofereceu algumas aos amigos e guardou várias. Depois, escolheu o melhor braço, os melhores pickups e o melhor “corpo” de cada uma delas, juntando os componentes numa guitarra híbrida, a qual batizou de “Blackie”.
A guitarra acompanhou-o até ao final dos anos 80, em várias digressões, e pode ser vista em inúmeras fotos do guitarrista. Clapton gostava tanto de “Blackie” que a tocou até dar literalmente cabo dela; a madeira do braço, de tão gasta, estreitou alguns milímetros, a ponto de as cordas não terem ponto de apoio.
Eric acabou por dar descanso a “Blackie”, receando que fosse roubada ou se danificasse. A Fender tirou as medidas à guitarra e lançou a Eric Clapton Fender Stratocaster Signature Series, um modelo concebido de acordo com as especificações do guitarrista. A verdadeira foi vendida, em 2004, por cerca de 960 mil dólares num leilão da Christie’s.
Clapton tem leiloado as suas guitarras para angariar fundos para o seu Crossroads Centre, em Antígua, uma clínica para dependentes de substâncias químicas, problema que o guitarrista conheceu bem. Entre outros instrumentos, conta-se a “Brownie”, que em inglês significa “duende benfazejo”, uma Stratocaster sunburst, das preferidas de Clapton, a qual tocou no álbum Layla, e que se pode ver na foto da contracapa.